Liberdade de imprensa exige emergência mediática
Além da necessidade de haver retornos do uso da produção jornalística, impõe-se a declaração do “estado de emergência mediática”. A saúde da cidadania impõe-na, a exemplo das emergências sanitária e ambiental.
Está a celebrar-se o bicentenário da liberdade de imprensa. E a saúde dos média vive hoje uma crise que justifica medidas especiais.
Na 1.ª lei da liberdade de imprensa (12.07.1821), os liberais liquidaram a censura prévia. Mas foi sol de pouca dura. Os golpes absolutistas, a partir da Abrilada (1823), reintroduziram a censura prévia e pouco depois (março 1824) revogaram a lei pioneira.
A partir daí houve altos e baixos na nossa história da imprensa. E foi preciso chegarmos ao 25 de Abril (1974) para se respirar, sem censuras estatais, o período mais longo de vida (democrática) do país.
Hoje, o estrangulamento não está nas leis, está no mercado. O pulsar do mercado – palavra que esconde a cidadania –, subjugado às regras da desregulação dos potentados tecnológicos, está a afetar as empresas mediáticas. Em Portugal e um pouco por todo o mundo. Sobretudo a “imprensa livre” (não estatal) tem sofrido fortes revezes associados à pressão, ou subversão, de populismos associados à desinformação nas’ redes’. Esta desinformação (fake news) polui o espaço público e afeta o uso da informação credível. Um estudo recente da ONG Reporters Sans Frontières (RSF) mostra uma preocupante desconfiança pública em relação aos jornalistas. Desconfiar dos jornalistas para confiar em vendedores de ‘fake news’ (caso Trump) é um tremendo risco para a democracia.
Vive-se hoje uma crise de excesso de informação, com a ‘galáxia digital’ a impor-se sobre os média tradicionais. No meio de crises (papel e publicidade), a passagem para o jornalismo digital está longe de satisfazer às necessidades económicas do setor. As empresas jornalísticas precisam de suportes diferentes das de outros ramos. Porquê? Porque desempenham um papel fundamental na sustentabilidade da democracia. Porque são uma necessidade básica da vida, tal como os serviços de saúde e a defesa ambiental.
A liberdade de imprensa impõe-se como necessidade basilar da cidadania. Essencial para a participação dos cidadãos na vida social, cultural, económica e política. Victor Hugo dizia que a imprensa é a locomotiva do progresso. Hoje sê-lo-ão os média em geral.
A cidadania precisa da saúde da imprensa. Apesar de ter aumentado, com a pandemia, a necessidade de informação, os média têm perdido influência em favor da informação avulsa e gratuita que circula na ‘ágora global‘.
Impõem-se medidas, à escala europeia, para conter a ‘extorsão’ da informação jornalística feita pelos ‘gigantes tec’ como Google, Facebook, Amazon, Apple e Yahoo. A UE tem estado preocupada, e bem, com a desinformação (a polémica “carta dos direitos humanos da era digital” surge daí), mas não se vê que queira travar a ‘extorsão’ feita pelos gigantes.
A desregulação só serve os gigantes e os paraísos fiscais. E o problema é grave. Como o sentiu a Austrália, combatendo o abuso. Apesar das ameaças, as autoridades australianas vergaram os gigantes, para bem da imprensa.
Além da necessidade de haver retornos do uso da produção jornalística, impõe-se a declaração do “estado de emergência mediática”. A saúde da cidadania impõe-na, a exemplo das emergências sanitária e ambiental. A informação jornalística constitui uma pedra angular da democracia. Enquanto não há um modelo de negócio digital sustentado para o setor e enquanto os ‘gigantes tec’ continuam sem lei nem roque, a emergência mediática é uma questão de sobrevivência das democracias. Cabe ao poder político e às instituições cívicas definir o âmbito desta emergência mediática. Algumas das medidas poderiam ser:
- defesa da Declaração Universal dos Direitos Humanos como carta magna da produção jornalística;
- apoios especiais (da bazuca) às empresas de média para o jornalismo investigativo, rigoroso e plural;
- (re)lançamento nas escolas (a partir do 2.º ciclo) da campanha Ler Jornais é Saber Mais, com apoios estatais;
- regulação do uso da informação jornalística pelos ‘gigantes tec’.
Neste tempo de celebração bicentenária, a liberdade de imprensa passa claramente pela emergência mediática.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico