Uma Educação Mínima
Num tempo em que tanta gente escreve sobre a Educação e verte lágrimas de dor pela Escola Pública e pelos mais desfavorecidos, seria importante que entendesse o que esta lógica de Educação Mínima representa para a Escola Pública: a sua redução a um currículo de trivialidades, em que tudo o que não é “essencial” é apelidado de “enciclopédico”.
Enquanto o ano lectivo terminava, os exames nacionais do secundário arrancavam e se discutia quando sairiam as listas de colocação do concurso de professores, eis que é publicado de forma quase despercebida o despacho n.º 6605-A/2021. Os menos atentos pensarão: mais um despacho, não deve ser nada de relevante, mais um diploma a juntar a tantos, nem sequer é um decreto.
No entanto, apesar de escrito naquele tipo de linguagem algo circular que os leigos têm dificuldade em compreender, o sumário do dito despacho deixa alguns sinais de não ser um daqueles diplomas menores, que apenas pretendem “operacionalizar” ou “clarificar” um dado ponto de outro diploma que deixou espaços por preencher. Diz-nos o sumário do despacho 6605-A/2021 que “procede à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa”.
Como de referenciais (e guiões ou guias) andamos nós mais do que repletos, porque os há de todos os formatos para os mais variados temas (basta uma rápida pesquisa online para os descobrirmos para a Saúde, mas de igual modo para o Desenvolvimento, para a Educação Financeira, para o Mundo do Trabalho, para a Educação Ambiental, até mesmo para o Empreendedorismo), a primeira reacção pode ser a de indiferença.
Só que sob a superfície, conhecendo-se o modo operatório do actual poder na Educação, há campainhas de alarme logo sob a superfície. O primeiro deles é que num diploma com menos de 8000 caracteres, mais de 6500 são de preâmbulo explicativo. O que, mesmo para quem é moderadamente iniciado nestas andanças, significa que está ali uma justificação demasiado longa para ser inocente ou tratar-se de matéria pouco importante. Introduções deste tipo, que em muito ultrapassam o articulado, significam que não estamos perante um despacho qualquer.
E a leitura do parágrafo que se segue a tão longa dissertação, a que já voltarei, tira-nos qualquer dúvida, pois o signatário (o secretário de Estado adjunto e da Educação) passa a explicar que é “no uso dos poderes delegados pelo Despacho n.º 559/2020, de 3 de janeiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 11, de 16 de janeiro de 2020”, que determina que a partir do próximo dia 1 de Setembro, todo o ensino não-superior passa a ser regido pelos princípios do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, pelas chamadas “Aprendizagens Essenciais”, sendo “revogados os demais documentos curriculares relativos às disciplinas do ensino básico e do ensino secundário com aprendizagens essenciais definidas”.
Ou seja, todos os programas em vigor até ao presente ano são revogados e substituídos por “aprendizagens essenciais”, justificando-se isso no dito preâmbulo com um trabalho que “obedeceu a várias etapas, sendo desenvolvido, desde o final do ano de 2015, através de um processo analítico, reflexivo e participado envolvendo um conjunto de iniciativas, das quais se destacam” uma análise nacional e internacional do currículo, um inquérito dirigido aos professores, que se afirma ter tido uma resposta “significativa” (embora sem quantificar o que isso “significa”) e um congresso internacional.
E é assim que as “aprendizagens essenciais”, que correspondem à mesma lógica do que em tempos antigos se designava como “programa mínimo” das disciplinas que tinham exame no secundário, se vão tornar o “referencial” para o nosso ensino básico e secundário. Neste sentido, este despacho é a pedra de cunha de todo o edifício iniciado em finais de 2015 com o fim das provas finais de ciclo e continuado com os “decretos gémeos” de 2018 (também publicados a 6 de julho). O que significa que vamos ter uma variante nacional da iniciativa dos Common Core Standards que tanto tem sido criticado nos EUA devido à queda do desempenho da maioria dos alunos americanos.
Este despacho formaliza uma Educação Mínima, em que o essencial se torna não o mínimo aceitável, mas uma espécie de benchmark a alcançar. O mínimo denominador comum passa a ser o horizonte a alcançar e isso é “legitimado” porque as “Aprendizagens Essenciais foram sujeitas a uma avaliação no subprojeto Curriculum Content Mapping, no âmbito do projeto Future of Education and Skills 2030, da OCDE, tendo-se salientado o papel das ações estratégicas de ensino orientadas para o perfil dos alunos como garantia da prossecução dos objetivos e conteúdos curriculares que as suportam”.
Num tempo em que tanta gente escreve sobre a Educação e verte lágrimas de dor pela Escola Pública e pelos mais desfavorecidos, seria importante que entendesse o que esta lógica de Educação Mínima representa para a Escola Pública: a sua redução a um currículo de trivialidades, em que tudo o que não é “essencial” é apelidado de “enciclopédico”. Uma Escola Pública que, em vez de democrática e inclusiva, se transforma voluntariamente numa escola para aqueles que não possam pagar a fuga para as escolas privadas, ou seja, que promove activamente o elitismo e a segregação. Se o lobby do ensino privado pudesse ter escrito um despacho para regular o ensino público, dificilmente teria escrito um diferente deste.