100 anos do PCC, um hino aos desencantados
O que agora se comemora não é a China do velho igualitarismo perfeito, mas a China do novo liberalismo imperfeito. O capital entrou, riqueza se criou e o partido aproveitou. É ele que tira o maior proveito deste processo.
Nos frenéticos tempos da Revolução Cultural, a República Popular da China (RPC) recebeu algumas figuras internacionais do mundo comunista para que pudessem testemunhar in loco o espírito da verdadeira revolução liderada pelo Partido Comunista Chinês (PCC). Entre eles, esteve no Império do Meio o escritor italiano Alberto Moravia, que ficou deslumbrado com a ditadura da igualdade. Que belo espetáculo aquele de ver os pobres a não cobiçar o que os outros pobres tinham, porque, na realidade, ninguém tinha nada. Nas suas palavras, a pobreza era sublime, dava-lhe alívio, era uma pobreza sem riqueza, a “condição normal do homem”. Não lhe incomodava a fome, o importante era que a crença estivesse bem nutrida. Aquele era o paraíso da “doutrina do comum”, um habitat da igualdade social perfeito. No entanto, aos poucos, aquele e outros mundos da mesma natureza ou caiam ou estavam para cair pela força da insustentabilidade. Os crentes, muitas vezes em zonas de conforto, suspiravam para que o mundo em que acreditavam não tombasse. Mas tombou. O pináculo do desencanto foi quando colapsou o ponto nevrálgico do império marxista-leninista, a União Soviética.
Mas nem tudo estava perdido. Entre as nações dos pobres, havia uma que queria ser rica como os mais ricos, usando os métodos alternativos da física social comunista: a RPC. E assim aconteceu, como uma bolsa de oxigénio para os desamparados da ortodoxia. Abre-se o tempo das reformas e da abertura. Assumem logo que os velhos ortodoxos do aparelho partidário chinês receberam a luz para se reinventarem. Não! Não foram os quadros do PCC, foram os chineses, cansados das tropelias ideológicas da máquina de poder que os governava, que procuraram com as mãos seguir aquilo que a cabeça não lhes queria permitir. Não, não foi em Pequim que o processo se reverteu, foi na vila de Xiaogang, na província de Anhui, que um grupo de camponeses, desafiando a justiça, atreveu-se a vender em mercado livre a sua produção agrícola. Estavam prontos a perder a vida para a tentar ganhar. O Partido assistiu, não reagiu; viu, aprendeu. Talvez enriquecer não fosse assim tão mau, “pouco importava que o gato fosse branco ou preto, o que importava era que caçasse ratos”. E, desta forma, num processo adaptativo, em perfeita metamorfose, o partido engrenou nas virtudes da economia de mercado, tornou-se mais desigual, para que todos pudessem viver melhor. O resto são economias de escala a funcionarem.
É esta fortuna que se celebrou no centenário do PCC, em 1 de julho de 2021, uma data homologada por Mao. Uma solenização que representa vinte e oito anos de conquista de poder, e setenta e dois da sua manutenção, mas que na realidade apenas incide numa parte do todo. Esta organização começou por ser plantada por Lenine nos agitados anos de governação nacionalista. A Conferência de Paz de Paris, em 4 de maio de 1919, após a Primeira Guerra Mundial, tinha ditado que as possessões germânicas na China teriam de ser entregues ao Japão. Uma onda de descontentamento minou a juventude, irrequieta, que se entregou com facilidade a ideias revolucionárias. Ambiente propício para que um núcleo marxista, secreto, fundasse este partido, em julho de 1921. Foi este o contexto que trouxe para a China uma nova ideia política criada na Europa, assim seguindo o seu caminho até aos dias de hoje.
Em 1949, após inúmeras batalhas – fase heroica – contra os japoneses e os nacionalistas, com apoio dos soviéticos, instalam-se no poder, sob a liderança do Grande Timoneiro, Mao Tsé-tung. Os nacionalistas, liderados por Chiang Kai-shek, derrotados, fugiriam para a ilha Formosa, ali estabelecendo uma espécie de “Astúrias do Oriente”, a sonhar com uma possível reconquista de todo um território perdido. Iniciou-se a fase de governação comunista, com múltiplos insucessos, cenários de caos e tragédia, que o partido hoje não apaga, mas que não os quer lembrar. O Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural foram campanhas de todos os excessos que resultaram em milhões de mortes. Em 1978, já com o Mao no seu mausoléu, o país estava desgastado e falido, um dos mais pobres do mundo.
O que agora se comemora não é a China do velho igualitarismo perfeito, mas a China do novo liberalismo imperfeito. Não a China do Yin, mas a China do Yang. É preciso entender que a maior das devoções dos chineses é à terra que pisa, não à ideia que lhes foi inculcada. Uma é natural, a outra construída. O resto foi deixar correr o que os seus e os outros quiseram fazer da China. O capital entrou, riqueza se criou e o partido aproveitou. É ele que tira o maior proveito deste processo, protege-se, ganha um povo, exalta-se. Os velhos desencantados do marxismo fracassado vestem novos fatos, procuram novos argumentos para justificar as suas crenças. Cantam os novos slogans da retórica propagandística, dizem o que se quer que seja dito. Onde há armas, vêem paz; onde há lucro, vêem progresso; onde há repressão, vêem sucesso. Uma frase daqui, outra dali, com algumas tradições, molda-se o modelo para um “socialismo com características chinesas”.
Nos corredores do Palácio do Povo, o poder não treme, segura-se com a mesma firmeza que a nova classe média endinheirada. Uma onda de vermelho reveste o país. No mar exibem-se as mais modernas embarcações navais, no espaço construiu-se uma estação espacial, e na terra retiraram-se milhões de pessoas da extrema pobreza. Um feito! O líder, envolto no slogan do “Sonho da China”, vestido com a túnica zhongshan, fala ao Povo. Milhões de almas lacrimejam na hora da celebração, segurando com firmeza na mão uma bandeirinha vermelha. O “mundo comunista” está ao rubro, com a chegada de um exemplo bem-sucedido para alimentar os fundamentos de um modelo tantas vezes desacreditado. Os velhos desencantados, encantam-se! Acompanham-nos os novos farejadores de capital, sem princípios e valores, que só se preocupam do sentido dos interesses. E já não importa o que dizia Moravia, porque nunca foi o povo que verdadeiramente importou, nem tão pouco a China, foi somente o amor ao Partido Comunista. E este, para já, naquela parte do mundo, está de boa saúde.
Nota: O texto vincula apenas a opinião do autor
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico