Le Pen e a barreira eleitoral
Em França vai continuar a pairar o espectro de uma eventual vitória de Marine Le Pen nas presidenciais de 2022, mas a barreira eleitoral que tem pele frente tem dado provas de grande resistência.
Apesar de alguns vaticínios, as eleições regionais em França não se saldaram pelo avanço eleitoral da Reunião Nacional de Marine Le Pen. Mais. O partido herdeiro da Frente Nacional continua sem conquistar nenhuma das 12 regiões gaulesas. Sete regiões foram ganhas pelos republicanos e os seus aliados e cinco pelo Partido Socialista e os seus aliados. Se o centro-direita foi o grande vencedor, o centro (Macron e o seu partido Em Marcha) e a direita radical foram os grandes derrotados.
Centremo-nos no resultado eleitoral do partido de Marine Le Pen. Como explicar o insucesso eleitoral de um partido liderado por uma candidata que, em 2017, passou à segunda volta das presidenciais e obteve 34% dos votos? Como explicar o insucesso da Reunião Nacional, uma versão 2.0 e maquilhada da Frente Nacional, num momento em que tanto se fala e escreve sobre polarização e radicalização política?
As explicações são diversas e estes resultados devem ser analisados com prudência. Nos últimos tempos, sondagens e análises alertavam para o risco real de Marine Le Pen ganhar as eleições presidenciais de 2022, beneficiando da diabolização de Macron pela esquerda e de um eventual fim da “frente republicana” que sempre travou as ambições de poder da família Le Pen. Contudo, em praticamente todas as eleições, o sistema eleitoral francês é de maioria absoluta a duas voltas. Ou seja, se nenhum candidato obtiver mais de 50% na primeira volta, os eleitores podem unir os seus votos na segunda para derrotar o candidato de que menos gostam. Este sistema parece continuar a ser tão eficaz para suster a conquista do poder pelos extremos como a poção mágica de Panoramix para impedir a conquista da irredutível aldeia gaulesa.
O sistema eleitoral maioritário a duas voltas é uma das criações originais da Quinta República de 1958. Nas eleições legislativas de finais do mesmo ano, na primeira volta, o Partido Comunista Francês foi o mais votado com quase 19%. Mas quantos dos 546 deputados acabariam por eleger os comunistas? Dez. Uma dezena de deputados para a Assembleia Nacional foi quanto o partido com quase 20% do eleitorado ao nível nacional e o mais votado na primeira volta elegeu.
Em maio de 2017, Marine Le Pen obteve quase 34% na segunda volta das eleições presidenciais. Passado pouco mais de um mês, a Frente Nacional obteve 13,2% dos votos na primeira volta das legislativas, mas no final elegeu apenas oito dos 577 deputados. Nada que nos devesse surpreender. Em 2012, com 13,6% não passou dos dois deputados.
Existe alguma exceção a este histórico desfasamento entre a proporção de votos da Frente Nacional e o número de eleitos? Sim, duas. As eleições para o Parlamento Europeu, onde por exemplo em 2014 e 2019 foi o partido mais votado e também com o maior número de representantes. E as eleições legislativas de 1986, onde, com 9,7% do voto nacional, elegeram 35 deputados. Mas o que têm estas eleições em comum? O sistema eleitoral. Nas eleições europeias, todos os Estados-membros têm de adotar alguma forma de representação eleitoral. E nas eleições de 1986 foi episodicamente adotado o sistema de representação proporcional. O que, face à representação parlamentar conquistada pela Frente Nacional, foi rapidamente “corrigido” pelos partidos guardiões da Quinta República.
Como nos ensinou Maurice Duverger, os sistemas eleitorais maioritários uninominais tornam a obtenção de representação parlamentar mais complicada para os partidos menos votados, a menos que tenham o seu voto geograficamente concentrado. Mas o sistema a duas voltas, com o seu requisito de maioria absoluta para se ganhar à primeira volta, vai para além disso. Chamemos à colação outro distinto cidadão francês, o Marquês de Condorcet. Um dos resultados que o sistema a duas voltas tenta impedir é a vitória do “perdedor de Condorcet”. Ou seja, daquele candidato que até pode ser o mais votado numa disputa a três, mas que perde num confronto a dois para qualquer um dos outros candidatos.
O grande desiderato da introdução deste sistema em 1958 foi o de evitar a instabilidade e a polarização do “governo de assembleia” que caracterizaram a Terceira e a Quarta República. A combinação dos efeitos mecânicos (sobre a transformação de votos em mandatos) e psicológicos (sobre as decisões dos eleitores) deste sistema permitiram um sistema multipartidário, mas estabilizado numa bipolarização de pendor centrista, com incentivos para os partidos se aliarem estrategicamente para garantir a vitória da sua família política ou para evitar a vitória dos extremos. Foi este sistema que consolidou o Partido Socialista e Os Republicanos como as duas forças dominantes em cada um dos polos, com a Frente Nacional a emergir desde os anos 80 como o principal challenger do sistema.
É certo que 2017 já figura nos almanaques como um ano de terramoto no sistema partidário francês. Nenhum dos partidos tradicionalmente dominantes conseguiu que os seus candidatos passassem à segunda volta das presidenciais. Nas legislativas, o recém-criado partido de Macron alcançou uma maioria esmagadora. Mas os efeitos do sistema eleitoral não desapareceram. Na segunda volta das presidenciais, uma expressiva frente eleitoral “republicana” garantiu a derrota de Marine Le Pen. Nas legislativas, um partido do centro assegurou uma maioria capaz de garantir a estabilidade governativa. Apesar de o sistema eleitoral para as eleições regionais não ser exatamente igual ao sistema maioritário a duas voltas tradicional, sendo uma singular mistura de representação proporcional de listas com segunda volta de pendor maioritário, os efeitos não são muito distintos.
Nada disto pode garantir que Marine Le Pen não tenha possibilidades reais de ganhar uma eleição presidencial. A fulminante erosão dos incumbentes, como já tinha acontecido com Sarkozy e François Hollande, pode ser letal para Emmanuel Macron. A polarização e a fragmentação têm provocado fissuras na frente republicana anti Le Pen. Em 2017, Nicolas Dupont-Aignan, um candidato de direita que obteve 4,7% dos votos, apoiou Marine Le Pen na segunda volta. Em 2021, são as vozes que juram, à esquerda e em coro com Jean-Luc Mélenchon, que Macron nunca terá o seu voto que lançam o alarme sobre as presidenciais de 2022.
No entanto, os resultados das eleições regionais trouxeram novos cenários. E chamam-nos a atenção para um curioso paradoxo da política francesa. Por um lado, a grande imprevisibilidade e volatilidade que têm marcado as últimas eleições, nomeadamente as de 2017. Por outro lado, a grande resiliência do sistema eleitoral em barrar a representação política a candidatos extremistas. Claro que o elefante na sala é o de saber até que ponto é sustentável um desfasamento entre o descontentamento demonstrado das mais diversas formas (coletes amarelos, proporção da votação nos partidos radicais, volatilidade, abstenção) e um sistema eleitoral desenhado para conter a radicalização.
Quem tiver a fórmula eleitoral mágica que atire a primeira pedra. Vai continuar a pairar o espectro de uma eventual vitória de Marine Le Pen nas presidenciais de 2022. Mas a barreira eleitoral que tem pele frente tem dado provas de grande resistência.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico