O que significa garantir o alinhamento na Educação?
Os desafios da decisão curricular são grandes. Porém, o decisor não pode incorrer na ingenuidade de ignorar os aspetos mais contestados no terreno – a avaliação – e pensar que o seu trabalho pode ser transferido para a escola.
Foi recentemente publicado e apresentado pela Fundação José Neves o relatório “Estado da Nação: Educação, Emprego e Competências em Portugal”. Dele destaco de um dos pontos síntese a frase: é necessário garantir o alinhamento entre a educação e o mercado de trabalho em termos de áreas de estudo e as competências a desenvolver. Este ponto apela ao processo de ensino e aprendizagem, em ciência (o que conheço melhor), aos documentos curriculares que o orientam, em vigor nas escolas, a partir dos quais o alinhamento na educação deve ser observado.
Entre 2001 e 2021, ocorreram mais de seis revisões curriculares que originaram vários documentos curriculares, alguns ainda em vigor. Em todas, fomos progredindo. Mas, chegados aqui, das seis revisões curriculares ficaram na escola as “Orientações curriculares” de 2001, as “Metas Curriculares” finalizadas em 2013 (sobre as quais foram concebidos os manuais escolares), o “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória” (PA) de 2017 e as “Aprendizagens Essenciais” de 2018. Um rasto de documentos com orientações ao processo de ensino e aprendizagem, discordantes e consequentemente sem coerência curricular.
Os documentos curriculares são da maior importância, assim como a linguagem e os conceitos neles utilizados. É com base neles que as escolas, professores e as editoras orientam e preparam o seu trabalho, a partir do qual resultará um processo de ensino e aprendizagem.
São o denominador comum à enorme diversidade de salas de aula e o garante da equidade, uma vez que o discurso político, neles registado, lhes confere valor normativo e didático.
Poderiam ser agrupados segundo três perspetivas de currículo: o Currículo Oficial (CO) – o que a política educativa definiu como intenção do que se deseja ensinado; o Currículo Interpretado (CI) – a interpretação de uma prática desejada do CO, apresentada no material curricular como, por exemplo, o manual escolar; o Currículo Alcançado (CA) – a conceção da avaliação do manual escolar e do professor, que exibe o que se pretende aprendido e verificado.
A articulação entre a política, a prática e a avaliação diminui a discrepância entre o desejado e o alcançado, um objetivo comum a todos os sistemas educativos em resultado do alinhamento na Educação.
Garantir a coerência curricular ou o alinhamento, no processo de ensino e aprendizagem, obriga a conceber uma estrutura concetual onde os conteúdos e as competências para a literacia científica se articulem num modelo de avaliação. Só desta forma fica percetível para alunos e professores a articulação entre o desejado e o adquirido ou alcançado. No caso da literacia científica, trata-se de ligar os diferentes tipos de conhecimento (de conteúdo, processual e epistemológico) às competências para a literacia científica, numa estrutura que os avalie.
A investigação publicada em Portugal sobre o ensino em ciência e sobre o conceito de literacia científica, bem como os relatórios da Inspeção Geral da Educação, os Pareceres e Relatórios do Conselho Nacional de Educação, o PISA e, mais recentemente, o Relatório do “Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular”, contêm informação sobre as falhas no processo de ensino e aprendizagem. É curioso notar a este respeito que, entre 2001 e 2021, a generalidade dos conteúdos das disciplinas não tem suscitado controvérsia. O mesmo já não se pode dizer relativamente à articulação destes às competências a desenvolver. É de realçar que o problema não reside no conceito de competência, nem este conceito deve ser responsabilizado pela discrepância entre o desejado e o alcançado. O problema reside, sim, numa boa articulação entre a política (CO), a prática (CI) e a avaliação (CA), presente nos documentos curriculares através de um modelo de avaliação.
Consciente de que num sistema educativo as orientações presentes nos documentos curriculares não são o único fator responsável pela coerência curricular, a confusão presente nos atuais documentos curriculares é certamente um fator de descredibilização, quando se tem como objetivo articular a politica, a prática e a avaliação, isto é, alinhar a Educação.
Numa pequena amostra aleatória dos “critérios de avaliação” de escolas do país (o documento previsto na Lei para regulamentar a avaliação na escola), verifiquei que na construção daquele documento surge a terminologia dos documentos curriculares em vigor, mas a sua maioria segue o modelo de avaliação institucionalizado, onde a avaliação formativa ainda tem pouca ênfase. Revelou ainda esta pequena amostra que a escola aplica o modelo de avaliação que conhece e domina, uma atitude sensata, face à ausência de uma proposta alternativa clara.
Não menos importante seria atingir um consenso na Política Educativa Nacional sobre a égide da equidade. Neste âmbito urge ter documentos curriculares sem ambiguidades, com valor normativo e didáctico face à complexidade de processo de ensino e aprendizagem, transversal e/ou interdisciplinar, mobilizador de competências transversais cognitivas, interpessoais e intrapessoais, conforme as recomendações das organização internacionais e as presentes no Currículo Oficial português.
Na nova decisão curricular, as políticas de autonomia e gestão flexível do currículo, associadas à de descentralização, atribuem às escolas a responsabilidade do processo de ensino e aprendizagem. Esta transferência de responsabilidade é exigente de alinhamento nos propósitos nacionais face à diversidade de escolas, de modo a garantir que inovar na gestão curricular salvaguarda a equidade.
Os desafios da decisão curricular são grandes. Porém, o decisor não pode incorrer na ingenuidade de ignorar os aspetos mais contestados no terreno – a avaliação – e pensar que o seu trabalho pode ser transferido para a escola.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico