A União Europeia ainda está a afinar a receita para combater a desinformação
Existe consenso na União Europeia sobre a necessidade de combater as fake news. Está em discussão a Lei dos Serviços Digitais para regular as redes sociais, mas o caminho para travar a desinformação ainda é longo.
Longe vão os tempos em que a desregulação da Internet se apresentava como sinónimo de liberdade. Longe vão igualmente os tempos em que as fake news eram encaradas como publicações inofensivas, partilhadas por alguns fanáticos nas redes sociais. O tempo agora é outro.
Já se passaram seis anos desde a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos e da realização do referendo do Brexit. Desde então, a perspectiva mudou: a influência das fake news passou a ser incontestável. Nos últimos anos, foram dados passos na regulação das plataformas digitais, mas a invasão ao Capitólio norte-americano em Janeiro deste ano voltou a lembrar que o caminho para travar a desinformação ainda é longo, penoso e sensível.
“Já passou o tempo da Primavera Árabe, onde pensávamos que a Internet era apenas um espaço de liberdade, um espaço de promoção de direitos, um espaço de democracia”, diz ao PÚBLICO a eurodeputada socialista Maria Manuel Leitão Marques, apontando, em seguida, os objectivos para o futuro: “Queremos que a Internet continue um espaço aberto, mas sem atentados à democracia.” O mote para o combate à desinformação segue a égide europeia de regulação das plataformas: “O que é ilegal offline deve ser ilegal online.” Nessa luta, existem “duas armas”: uma “voluntária” e outra “legal”, explica Leitão Marques.
A arma voluntária assenta nos códigos de conduta sobre a desinformação, que apela à auto-regulação das plataformas sobre os próprios conteúdos. O primeiro foi criado em 2018, mas este ano, em Março, a Comissão Europeia decidiu reforçar o código, sugerindo, por exemplo, a criação de um centro de transparência e propondo que seja dada capacidade aos utilizadores para serem eles próprios agentes na prevenção e na denúncia das publicações falsas.
“As ameaças colocadas pela desinformação em linha estão em rápida evolução e temos de intensificar a nossa acção colectiva para capacitar os cidadãos e proteger o espaço democrático da informação”, justificou então Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia com a pasta dos Valores e Transparência.
O reforço do código de conduta surge depois de um relatório da própria Comissão Europeia ter concluído, em 2020, que as medidas registaram “algumas deficiências” no cumprimento, sobretudo por serem de cariz voluntário. E é aí que entra a outra “arma”, a legal, que exige um “trabalho muito difícil”, considera Maria Manuel Leitão Marques. Como se regula as plataformas sociais, como o Facebook, o Twitter ou o Google, sem minar a liberdade de expressão? “Essa é a pergunta de um milhão de dólares”, reconhece a antiga ministra da Presidência e da Modernização Administrativa no primeiro governo de António Costa. “É muito fácil dizer que o que é ilegal num lado é ilegal no outro, mas quando argumentamos que não é ilegal, mas é perigoso, aí entramos num domínio bastante difícil”, distingue Leitão Marques.
“A Comissão está a agir”
Para já, a União Europeia prepara a criação da Lei dos Serviços Digitais (DSA, da designação inglesa Digital Services Act), que procura proteger os direitos fundamentais no mundo online. A esta junta-se uma outra lei, complementar, a Lei dos Mercados Digitais. Ambas foram apresentadas em Dezembro de 2020 pela Comissão Europeia e estão agora em discussão no Parlamento Europeu (PE). São os mecanismos legais da União Europeia (UE) para terminar com a era da Internet desregulada.
“Podemos ter posições mais liberais ou mais reguladoras, mas há um sentimento comum, um consenso básico dentro do Parlamento, de que as plataformas digitais precisam de regulação, que o tempo da não-regulação é um tempo do passado”, considera a eurodeputada que integra a família dos socialistas europeus.
As propostas legislativas ainda estão na fase de negociação – a expectativa é que o processo esteja concluído na Primavera de 2022 –, mas já são conhecidas algumas das intenções da Comissão. Os objectivos passam por obrigar os gigantes digitais a cooperar com as autoridades nacionais, a serem alvo de auditorias externas, a partilhar dados com investigadores e com as autoridades e a apresentarem um serviço de reclamação aos utilizadores. Em caso de não cumprimento, a Comissão sugere a aplicação de multas até 10% da facturação anual da empresa. “É um sinal de que há uma consciência colectiva de que temos um problema. Podemos não ter os meios afinados para resolvê-lo, mas temos um problema e vamos tentar, com essas leis europeias, combatê-lo”, defende Leitão Marques.
Para Nuno Melo, eurodeputado eleito pelo CDS-PP, quer o código de conduta, quer as leis de regulação da Internet demonstram que a Comissão Europeia está “determinada” em combater a desinformação. “A Comissão Europeia está a agir e está agir com critério, tanto quanto é possível”, afirma, realçando a complexidade das fake news, um fenómeno “que não é de direita nem de esquerda” e que vai para além da política. “Para que se tenha noção, a Comissão registou mais de 2700 artigos diários com notícias falsas sobre a covid-19 nas redes sociais em Maio do ano passado. É impressionante.”
“Longe da fórmula”
O fenómeno das fake news tem nas redes sociais a plataforma principal de propagação, mas a desinformação já ultrapassou o espaço virtual e contaminou o debate público. Num seminário sobre o “dilema da desinformação”, organizado pelo PE na semana passada, Sophie in ‘t Veld, eurodeputada que preside ao grupo de monitorização da democracia, Estado de direito e direitos fundamentais do PE, defendeu que o debate sobre a desinformação tem tendência a ignorar os “elefantes na sala”.
“Estamos a ignorar os elefantes na sala, que são as pessoas e as fontes que nós consideramos legítimas, como chefes de Estado ou de governo, Donald Trump ou Orbán, e muitos outros”, afirmou então a holandesa, que integra a família liberal Renovar a Europa. E concluiu: “Nos Estados Unidos e na Europa, temos grandes dificuldades em defender a democracia quando ela está a ser atacada.”
A complexidade do fenómeno obriga a uma “mudança de cultura”: é preciso “criar uma cultura que penalize os desinformadores”, considera Leitão Marques. Também Nuno Melo defende a importância da educação para a literacia digital no sentido de promover uma “alteração de mentalidades”. “As mentalidades demoram anos a serem alteradas, às vezes são os mais novos que apreendem novos conceitos”, assinala o centrista.
Ainda assim, Nuno Melo, que integra a família do Partido Popular Europeu (PPE), realça que, nos casos de propagação de desinformação por agentes políticos, existe a identificação da pessoa. “Pelo menos aí há uma pessoa certa e determinada e podemos agir, e responder na própria página, nos órgãos de comunicação social ou politicamente.”
“Preocupação tenho eu naquilo que não é verificável”, acrescenta Nuno Melo, referindo-se aos perfis falsos nas redes sociais e à importância que têm na difusão de conteúdos falsos. Por isso, advoga, para combater a desinformação é “preciso trazer a justiça para a comunicação virtual”. “Quem é lesado por isso, mas não puder fazer que quem assim age possa pagar por isso, nomeadamente pela via judicial, então as fake news não acabam”, afirma o eurodeputado, assinalando que a recolha de provas digitais na justiça é “praticamente impossível” actualmente.
São vários os caminhos que se começam a abrir para travar a desinformação. Notícias falsas sempre existiram. Mas uma avalanche de desinformação que coloca em causa as democracias liberais é uma luta deste tempo. “Ainda estamos muito longe de encontrar uma fórmula para que tudo isso seja ultrapassado, mas pelo menos há essa vontade e está-se a caminhar para lá”, defende Nuno Melo, ressalvando, contudo, que “muitas vezes a tecnologia anda à frente dos decisores políticos”. Está em marcha a corrida contra a desinformação para salvar a democracia.