Direitos humanos na era digital: a Carta portuguesa
O enfoque do debate público no risco de uma nova “censura” é não só enganador, mas também redutor, uma vez que acaba por deixar na sombra a importância fundamental da Carta portuguesa enquanto instrumento da defesa e da mobilização pelos cidadãos das suas liberdades e direitos no mundo digital em que vivemos.
Entrará em vigor em julho próximo a Lei n.º 27/2021, que aprova a Carta de Direitos Humanos na Era Digital. Resultante de projetos do PS e do PAN, a lei foi aprovada na Assembleia da República com os votos favoráveis do PS, do PSD, do CDS, do BE e do PAN e as abstenções do PCP, do PEV, do Chega e da IL.
Não é demais sublinhar o carácter pioneiro e a oportunidade desta Carta, em face da omnipresença contemporânea das tecnologias digitais em praticamente todas as esferas da vida social, económica, cultural e política, realidade que o contexto da pandemia tornou ainda mais evidente. Como afirmou Hillary Clinton, num discurso proferido em 2011, expressivamente intitulado “Internet rights and wrongs”, “a Internet converteu-se no espaço público do século XXI – a praça da cidade, a sala de aula, o mercado, o café, a discoteca”. É cada vez mais difícil distinguir entre as dimensões material e digital das nossas existências.
“Todas as mudanças no sistema de direitos e deveres correspondem a mudanças nas oportunidades efetivamente disponíveis socialmente”, observou o filósofo Paul Ricoeur. Manifestamente, a revolução digital amplia as possibilidades de os indivíduos exercerem as suas liberdades de expressão, informação, reunião e associação, bem como as liberdades económicas. A Internet constitui, reconheceu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um dos principais meios de realização das liberdades de expressão e de informação, bem como da sua participação em atividades e debates relacionados com questões de política e interesse públicos.
No essencial, o objetivo da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital reside precisamente na garantia, no espaço digital, de liberdades e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Logo no seu artigo 2.º se pode ler que “A República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital” (n.º 1), acrescentando-se que “As normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço” (n.º 2).
Dir-se-á que estes princípios vigoram independentemente da sua declaração pela Carta. Convirá, no entanto, não desvalorizar os efeitos das declarações de direitos. As declarações de direitos proporcionam a tomada de consciência dos cidadãos sobre os direitos que lhes são reconhecidos, facilitando a sua mobilização, o que se afigura decisivo no espaço descentralizado e difuso das redes electrónicas. Acresce que as declarações de direitos fundamentais implicam a responsabilização e o comprometimento do Estado na criação de condições que não só protejam, mas também promovam a efetividade dos direitos. É o que se passa com a Carta, a qual determina que compete ao Estado português promover a criação de uma tarifa social de acesso à Internet para clientes economicamente vulneráveis, a existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos e a continuidade do domínio “.pt”, conectividade de qualidade, em banda larga e a preço acessível em todo o território nacional. O contexto da pandemia não deixou margem para dúvidas sobre a relevância de uma atuação firme do Estado na redução das desigualdades de acesso às tecnologias digitais.
A adopção da Carta encontrou eco nos media, particularmente em artigos de opinião que tenderam a concentrar a atenção tão-só num dos 23 artigos da Carta, o artigo 6.º sobre o “Direito à proteção contra a desinformação”. Alguns comentadores apressaram-se a acusar o Governo (não obstante tratar-se de uma lei do Parlamento aprovada por larga maioria e sem votos contra) de pretender institucionalizar uma nova censura – António Barreto foi ao ponto de invocar o risco de uma nova “inquisição”. A Iniciativa Liberal, ainda que admitindo os méritos da iniciativa legislativa, anunciou a intenção de “apresentar projeto de lei para revogar artigos da censura”.
Importa, desde logo, realçar que o mencionado artigo 6.º tem em vista, nos seus próprios termos, assegurar “o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”. A exposição dos cidadãos à desinformação e o combate às “fake news” têm estado no centro de preocupações das instituições europeias, que vêm avisando que a desinformação mina a confiança nas instituições democráticas e nos media. A desinformação, qualificada pelo comissário europeu responsável pelo mercado interno como a “doença do século”, é entendida como informação deliberadamente falsa e fabricada ou que mistura elementos verdadeiros com mentiras, vídeos manipulados ou descontextualizados e ainda contas falsas usadas para mascarar a proveniência política de mensagens que pretendem influenciar a opinião pública. Em maio do ano passado, a Comissão registava mais de 2700 artigos diários com notícias falsas sobre covid-19 nas redes sociais (v. notícia do PÚBLICO de 5 de maio de 2020). Da Comissão ao Parlamento Europeu se vem exortando instituições europeias e dos Estados-membros, plataformas das redes sociais e sociedade civil a empenharem esforços coordenados e sustentados tendo em vista a detecção, o alerta rápido, a partilha de dados e a avaliação de campanhas de desinformação. O Código de Prática sobre a Desinformação, impulsionado pela UE desde 2018 e a que aderiram os principais operadores digitais (Facebook, Google, Twitter, Mozilla, etc.), define compromissos de transparência da publicidade política, obrigações de sinalização de conteúdos ilícitos, esforços para encerrar contas falsas ativas e de cooperação com verificadores de factos e investigadores académicos, medidas que, constata-se, têm tido impacto no maior destaque dado a fontes de informação credíveis e na disponibilização de ferramentas para denúncia de abusos pelos utilizadores. Há notícia de que as plataformas reagiram com rapidez para impedir a publicação de “fake news” ou teorias conspirativas no contexto da pandemia: por exemplo, o Facebook abriu na sua página de atualidades uma janela que remete para as mensagens da OMS. Twitter, Facebook, YouTube e Instagram procuraram controlar anúncios de alegadas curas milagrosas.
Pensado como instrumento de autorregulação, o Código Prático sobre a Desinformação vem sendo reconfigurado como instrumento de corregulação envolvendo a monitorização continuada pela Comissão do respeito dos compromissos assumidos pelas plataformas.
A esta luz, os receios dos críticos da Carta portuguesa parecem um tanto injustificados, pois que, na linha das orientações europeias, o que se prevê na Carta dos Direitos Humanos na Era Digital é, literalmente, “a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados” e o “incentivo à atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”, i.e., não públicas, mas de utilidade pública, uma assinalável diferença.
Resulta claro que o papel do Estado-Administração no combate à desinformação passará, essencialmente, por incentivos aos operadores e aos utilizadores, longe de qualquer pretensão “censória”, seja a priori, seja a posteriori. A avaliação e decisão sobre alegados casos de desinformação caberá sempre, em última instância, ao sistema de justiça.
Em suma, o enfoque do debate público no risco de uma nova “censura” é não só enganador, mas também redutor, uma vez que acaba por deixar na sombra a importância fundamental da Carta portuguesa enquanto instrumento da defesa e da mobilização pelos cidadãos das suas liberdades e direitos no mundo digital em que vivemos.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico