Evitar a catástrofe climática e proteger a saúde da população
As exigências do protesto pacífico da iniciativa “Em Chamas” que bloqueou a Rotunda do Relógio durante a tarde do dia 22 de maio não são apenas atuais mas urgentes. Por mais rapidamente que a polícia remova os manifestantes e por mais duramente que o sistema judicial atue, não será possível calar esta voz: quem deveria ser julgado não são os manifestantes que defendem a estabilidade climática, mas quem a destrói ou não a protege.
Segundo o Relatório Especial do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), publicado em 2018, é necessário cortar as emissões globais de gases com efeito de estufa (GEE) entre 41 e 58% até 2030 (em relação aos níveis de 2010), se quisermos cumprir os objetivos do Acordo de Paris e manter o aumento da temperatura global média abaixo de 1,5ºC, evitando uma catástrofe climática. Em 2019, as emissões de GEE atingiram um novo máximo histórico mundial com a emissão de 59,1 giga toneladas de CO2 equivalente (GtCO2e). Mesmo a redução das emissões em 2020 devido à pandemia de covid-19 (-7%) ficou abaixo do necessário: De acordo com o Relatório de sobre a Lacuna de Emissões 2020 das Nações Unidas, a redução anual de emissões de GEE teria de ser de 7,6%, para chegar a emissões globais de 25 GtCO2e em 2030, mantendo o Planeta numa trajetória de estabilidade climática. No entanto, as políticas de retoma económica adotadas no contexto pós-pandémico deixam prever o segundo maior aumento anual de emissões de carbono da História, aproximando-nos perigosamente da catástrofe climática.
Olhando para Portugal, o Inventário das Emissões de Portugal, elaborado pela iniciativa cidadã Acordo de Glasgow, demonstra a magnitude da tarefa à nossa frente. Em 2018, Portugal emitiu 74,2 mega toneladas de CO2 equivalente (MtCO2e), podendo apenas emitir 18 MtCO2e em 2030, para manter o aquecimento global médio abaixo de 1,5%. Este cálculo tem forçosamente em conta as responsabilidades históricas e a capacidade para realizar a transição, bem como as necessidades de desenvolvimento dos países mais pobres, utilizando métricas internacionalmente reconhecidas. Perante a obrigação de reduzir as emissões de GEE de Portugal em 75%, em apenas numa década, as medidas terão de ser, inevitavelmente, drásticas para evitar a catástrofe, não sendo possível voltar ao “normal” pré-pandémico.
No entanto, o Acordo de Paris nem sequer inclui as emissões da aviação e do tráfego marítimo internacionais, focando-se apenas nas emissões nacionais de cada país. Mas, obviamente, elas não desaparecem por magia. As emissões de GEE da aviação, em conjunto com outros efeitos como a formação de rastros de condensação, de nebulosidade, e de ozono em grande altitude, são responsáveis por quase 6% do aquecimento global. A nível nacional, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica em 2050 (RNC2050), motivo de grande orgulho para o Governo de Portugal, segue a mesma metodologia do Acordo de Paris e não inclui as emissões dos voos internacionais que partem dos aeroportos portugueses quando fixa a meta de emissões nacionais em 10 MtCO2e em 2050. No entanto, de acordo com a “Contestação abaixo-assinada sobre o EIA do Aeroporto do Montijo e suas Acessibilidades”, de 18 de setembro de 2019, subscrita por onze cientistas portugueses, o aumento previsto da capacidade aeroportuária em Portugal faria ascender as emissões da aviação com origem em Portugal a 6 MtCO2e em 2050. Estas emissões corresponderiam a 60% das emissões admissíveis a nível nacional no contexto do RNC2050, sem sequer ter em conta os efeitos não-CO2 da aviação, sendo assim manifestamente impossível cumprir o objetivo de evitar a catástrofe climática sem tocar na aviação internacional.
Os dados mais recentes da Organização Europeia para a Segurança da Navegação Aérea (Eurocontrol) mostram que 6,2% dos voos com origem em aeroportos Europeus (> 4000 km) são responsáveis por mais de 50% das emissões de carbono associadas, sendo os voos de curta e média distância responsáveis por outros 25%. Quando estes são mais facilmente substituíveis pela ferrovia, o facto de 75% das emissões estarem ligadas aos voos de longa (1500 – 4000 km) e muito longa distância (> 4000 km) exige uma profunda alteração do nosso paradigma de hipermobilidade. Queiramos ou não, para além da aposta na ferrovia, será imprescindível reduzir o número de voos de longa distância para reduzir as emissões, alterando também um modelo económico que aposta fortemente na monocultura do turismo. Para tornar esta mudança – que é inevitável – numa transição justa para os trabalhadores do sector da aviação e do turismo é preciso implementar, desde já, medidas adequadas.
Mas o tráfego aéreo não afeta apenas a estabilidade climática: prejudica a saúde da população na proximidade de grandes aeroportos devido ao ruído e a emissão poluentes atmosféricos. Ainda recentemente, uma carta aberta subscrita por 15 coletivos e movimentos ativos e intervenientes em Lisboa alertou para os efeitos do ruído excessivo sobre a saúde humana que incluem, para além da redução do bem-estar e da qualidade do sono, um aumento das doenças cárdio- e cerebrovasculares, de internamentos hospitalares, e um risco acrescido de morte. Esta situação prejudica gravemente mais de 250.000 cidadãos em Lisboa e nos concelhos limítrofes, expostos a níveis de ruído muito acima dos limites máximos legalmente admissíveis – incluindo durante a noite –, ultrapassando em muito os valores recomendados pela Organização Mundial da Saúde. O relatório da 4.ª Comissão Permanente da Assembleia Municipal de Lisboa sobre a Petição 11/2019 – Aeroporto da Portela: queremos ser informados e ouvidos sobre os seus impactos, aprovado por unanimidade em reunião plenária da Assembleia Municipal de Lisboa em 25 de maio de 2021, recomenda a realização de uma avaliação do impacte ambiental (AIA) sobre as obras de ampliação e requalificação do aeroporto Humberto Delgado. De acordo com os signatários da carta aberta acima referida, esta AIA deve incluir expressamente os impactes atuais e futuros do aeroporto sobre a população afetada no tocante à sua qualidade de vida e à sua saúde.
As exigências do protesto pacífico da iniciativa “Em Chamas” que bloqueou a Rotunda do Relógio durante a tarde do dia 22 de maio não são apenas atuais mas urgentes: Menos aviões! Transição justa! Mais ferrovia! A nossa casa comum, o planeta Terra, está a arder. Por mais rapidamente que a polícia remova os manifestantes e por mais duramente que o sistema judicial atue, não será possível calar esta voz: quem deveria ser julgado não são os manifestantes que defendem a estabilidade climática, mas quem a destrói ou não a protege. Compete agora ao Governo e à Assembleia da República cumprir o artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa que define as tarefas fundamentais do Estado: promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, e defender a natureza e o ambiente, preservando os recursos naturais!
Médico e activista, membro da Rede para o Decrescimento e da campanha ATERRA
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico