A questão racial no caso da Lusa
É verdade que o editor de Política se demitiu e que a agência já tornou público um pedido de desculpas. Sabe a pouco. Achará alguém que isto basta para reparar o que foi feito? E a responsabilidade dos diferentes órgãos da Comunicação Social que reproduziram o insulto? Como se repara uma coisa destas?
1. É inaceitável que a Lusa tenha veiculado, pela pena de um seu jornalista – Hugo Godinho –, uma descrição racista da deputada do PS Romualda Fernandes. Depois de o dano estar feito, é urgente responsabilizar com os meios existentes o autor do insulto. É óbvio que os problemas aqui são o caráter racista da designação utilizada, a necessidade que o jornalista demonstrou em discriminar a deputada pela sua origem étnico-racial (algo que não fez para as restantes personalidades elencadas no artigo); e perceber se este acto, que já é reprovável se for uma situação pontual, se inscreve ou não numa conduta mais alargada do jornalista. No que diz respeito à Lusa, é verdade que o editor de Política se demitiu e que a agência já tornou público um pedido de desculpas. Sabe a pouco. Achará alguém que isto basta para reparar o que foi feito? E a responsabilidade dos diferentes órgãos da Comunicação Social que reproduziram o insulto? Como se repara uma coisa destas?
2. Fica evidente que é preciso ir mais longe e garantir maior representatividade das comunidades racializadas nas redações. Seria não só justo do ponto de vista da igualdade de acesso ao sector, como estaríamos mais prevenidos/as quanto a situações como esta e outras. Talvez agora o Partido Socialista, no Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, reconheça a importância das cotas étnico-raciais e não se limite às estratégias de sensibilização para a representatividade. Essas estratégias não irão reverter significativamente as desigualdades. Foi isso que aprendemos com a falta de representatividade das mulheres nos cargos de decisão. Nunca conseguiríamos ter a representação feminina em lugares de decisão que hoje temos (que ainda é pouca, que está sempre em risco e que está longe de ser interseccional, apesar de agora as instituições “usarem” muito a palavra) se não fosse através de cotas. Não se trata aqui de advogar que as cotas resolvem por si só o problema, mas que elas são uma das ferramentas disponíveis para reparar a fractura social que é o racismo, nas suas diferentes dimensões (estrutural, institucional, quotidiana, internalizada). Uma sociedade estruturalmente racista e patriarcal não cede abnegadamente espaço aos grupos racializados e às mulheres. Para combater desigualdades estruturais não basta sensibilizar para, é preciso uma acção afirmativa que garanta, efetivamente, a representatividade.
3. Neste momento, nenhuma das três deputadas negras eleitas em 2019 escapou ao insulto racista no espaço mediático e virtual. Com Joacine Katar Moreira foi uma avalanche violentíssima; com Beatriz Gomes Dias foi menos visível, mas os insultos nas redes sociais nunca cessaram, sobretudo agora que é candidata a Lisboa. Hoje, o alvo é Romualda Fernandes, a quem endereço a minha solidariedade. E assim se vai mostrando o quão “Portugal não é racista”. E assim se vai dizendo a futuras candidaturas que não são bem-vindas, que serão achincalhadas no espaço mediático, independentemente de terem um estilo mais ou menos reservado. É preciso garantir representatividade étnico-racial na política, com cotas. Essa seria a maior defesa que o PS poderia fazer da sua e de outras/os deputadas/os racializadas/os do presente e futuro.
4. Este caso da Lusa mostra bem o estado de normalização do racismo em Portugal. O insulto produzido pela agência noticiosa deve ser considerado inaceitável quer se trate de uma deputada, de uma empregada de limpeza, de um jovem negro nos transportes públicos, de um trabalhador da construção civil, etc. Quer seja num jornal, num programa televisivo, no quotidiano das escolas ou na rua. Lembro-me de Miguel Sousa Tavares que, ainda há pouco tempo, perguntava numa entrevista televisiva a André Ventura se ele tinha algum amigo “preto”. Lembro-me dos que têm defendido “a liberdade de ofender”. Lembro-me das inúmeras pessoas que acham que essa palavra não tem mal nenhum (porque “o que interessa é a intenção com que se diz"; “porque “negro/a” ou “afrodescendente” é estar com rodriguinhos"; “isso é politicamente correcto”; “porque tenho um/a amigo/a que diz que prefere assim"; “porque é apenas uma constatação de facto"; “porque dizer “negro/a” é como dizer “nigger”, isso é que é ofensivo"; “porque “vocês” chamam também isso uns aos outros”; etc). Alguém acredita que nos nossos tribunais e noutras instituições é evidente e está estabelecido que essa expressão é racista? Pergunto-me quanto dos mais de 80% de queixas na CICDR que não levam a lado nenhum e quanto do silêncio das vítimas têm que ver exactamente com isso. Pergunto-me ainda em que parte do currículo para a Cidadania e Desenvolvimento se discute isto.
5. Por fim, isto conduz-nos a uma outra discussão. Alguns poderão perguntar: “não é a possibilidade de classificação da pertença étnico-racial (por exemplo, nos Censos, mas também enquanto “lugar de fala” e sujeito político) uma das reivindicações do movimento antirracista? Não há aqui uma contradição entre essa reivindicação e o repúdio face à “classificação étnico-racial” usada na Lusa para descrever a deputada Romualda Fernandes? Essas reivindicações do movimento antirracista têm como objetivo a promoção da igualdade étnico-racial, seja pela desocultação dessa desigualdade, nomeando as categorias que nela estão implicadas, seja pela emancipação e organização política dos grupos subalternizados em torno daquilo que faz deles um grupo para si. Estes seguramente não são os objectivos da peça da Lusa. Não podemos manter a postura do “não vejo cores” (“colour blind”) com base no argumento que o acto de nomear a pertença étnico-racial é em si racista, porque sem nomear não conseguimos combater o problema. Mas também não podemos permitir que a categorização étnico-racial circule de forma leviana ou até com dolo, isto é, volto a sublinhar, desancorada de um objectivo de promoção da igualdade étnico-racial. A resposta à pergunta se se deve usar ou não usar categorias étnico-raciais não é de caráter essencialista, extirpada da realidade. A resposta não é “sim ou não” e fica resolvido. A questão é “para que finalidade?”
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico