Síndrome de burnout: futuro do trabalho?

O trabalho contemporâneo transformou-se já num autêntico palco de sofrimento. De há muito que os cravos da vida laboral se foram.

“Sinto que não consigo continuar mais”, afirma um professor atormentado pela sua rápida conversão digital para o saber-fazer didático. “Eu não posso perpetuar estas más condições de trabalho”, declara um médico, ao terminar a difícil jornada hospitalar. O leitor que vive do próprio trabalho não terá dificuldades em reconhecer tal sensação aziaga de se chegar a um – nada metafórico – “fim da linha”, na vida laboral, nos mais diferentes sectores. Se já era assim, mesmo antes do ano desta epidemia global, digamos já que, depois de mais de 100 milhões de casos confirmados de covid-19 e 365 dias de medidas securitárias, nada será como antes. Dois eventos metabólico-sociais de vulto tomaram de assalto o quotidiano de milhões: a nova crise económica internacional e uma nova pandemia global – ou, na verdade, sindemia – que afluíram catastroficamente ao redor do Planeta.

No presente momento, dificilmente há alguém que não tenha ouvido falar em “burnout. A expressão determinou o debate público europeu e preencheu as páginas dos jornais sem que, necessariamente, difundisse uma definição clara e/ou um consenso científico. Mas o que é a tal Síndrome de Burnout ou – já mais precisamente – o que é o burnout? O sentido literal desta categoria anglo-saxónica é o de “arder”, “deixar-se queimar” e/ou “incendiar-se” – de dentro para fora, de ponta a ponta, de fio-a-pavio – e não resulta numa tradução consequente – ou sequer útil – numa primeira aproximação à língua portuguesa. No vocabulário corrente, fala-se em burnout para designar algo que parou de funcionar devido à mais absoluta falta de energia. A figuração literária implica seres humanos que já ultrapassaram uma situação limítrofe no seu desempenho de nexo psicofísico. Tudo isto foi elevado à enésima potência com o espectro do lay-off, dos encerramentos e do desemprego, em meio à simultaneidade das crises que assolam o mundo do trabalho contemporâneo.

A Síndrome do Esgotamento Profissional (“burnout”), por fim, compôs oficialmente a 11.ª Classificação Internacional de Doenças (CID11) – da Organização Mundial da Saúde (OMS) – em Maio de 2019 como uma questão social relacionada ao universo laboral. Apesar de ter sido pela primeira vez criada pelo novelista inglês Graham Greene (1960) e, então, desenvolvida – no contexto das ciências da saúde – por um psicanalista alemão, Herbert Freudenberger, durante a década de 1970, foi a equipa liderada por Christina Maslach, no Departamento de Psicologia Social da Universidade de Berkeley (1981-2017), que adotou tal termo com maior sistematicidade. Na sua aclamada sintomatologia triádica, o distúrbio consistiria na adjudicação dos fenómenos de: 1) exaustão emocional avassaladora, 2) sentimentos de “cinismo” (apatia) e distanciamento do próprio trabalho e, por fim, 3) sensação de ineficácia pessoal ou carência de realização socioprofissional face ao emprego.

Não é a primeira vez que um ente nosográfico algo difuso trata de instituir uma relação entre o adoecimento psíquico e físico ao ritmo e intensidade das relações laborais no curso da moderna civilização capitalista. Entre finais do século XIX e inícios do século XX, a neurastenia torna-se no diagnóstico mais comum de doença mental finissecular. Tal condição clínica – que George Beard descreve como a “neurose da vida moderna” – encontra repercussões consideráveis nas sociedades da época. O autor já arrolava o advento da nova doença com as mudanças económico-sociais resultantes da revolução industrial. Com a franca transformação das formas de trabalho, o progresso técnico e a extensão da racionalização científica, nos anos 1950, tem lugar o surgimento de novas enfermidades ocupacionais. Mas deram também azo à expressão de sintomas vagos, dentre os quais os de fadiga e cansaço nervoso. Seriam os antepassados legítimos da Síndrome de Burnout?

Mais do que a escavação arqueológica de qualquer noção, interessa-nos, sobretudo, a sua história viva. Maslach, apesar das nossas críticas à conceção psicométrica e, mais que tudo, positivista – de sua produção científica –, revela farta honestidade intelectual ao recontar a sua progressiva aproximação ao termo do dito “queimar-se pelo trabalho": “Se alguém disser que eu criei o termo burnout (como resposta ao stress laboral intenso e prolongado), não é verdade! Ninguém o inventou – é que ele já existe há muito, muito tempo! – e surgiu natural, espontaneamente, no vocabulário das gentes trabalhadoras.” O ato de fala começa a circular como uma intenção comunicativa, articulado ao sentido de determinado enunciado, no último quartel do século XX. O que hoje nomeamos como ofensiva do neoliberalismo reconverteu os ambientes de trabalho de modo lancinante – em praticamente todo o globo – em locais tóxicos, competitivos e algo atrozes. Esta realidade atingiu, em cheio, Portugal. Mas não sem certo atraso relativo. Enquanto as políticas de austeridade se difundiram pelo mundo, o país viveu o momento mais alto de realização da classe que vive do próprio trabalho: o inverno glacial de Pinochet no Chile coincidiu com a flor da primavera de Abril em Portugal. As greves, assembleias e manifestações estampavam a palavra de ordem: “Trabalhar para viver — Não viver para trabalhar.” O sorriso farto é a memória icónica de 74-75. Mas a cadência da história global, embora tarde, não falhou em se firmar cá.

A coerção socioeconómica sobre os trabalhadores subiu a um nível insuportável, tendo em conta o avanço das forças sociais de produção das últimas décadas. A organização do trabalho, através de novos métodos e técnicas de gestão laboral, está a recrudescer o individualismo dos trabalhadores e – ato contínuo – o seu isolamento social. A solidão reina. Muitos locais de trabalho são hoje pautados por ambientes frios, hostis e carentes de sentido. Isso fragiliza a saúde mental dos trabalhadores e potencia as raízes do adoecimento laboral. É cada vez mais difícil passar incólume aos constrangimentos da organização do trabalho. A concorrência feroz já se estendeu do chão das empresas para o interior dos próprios trabalhadores. As metas e os objetivos impostos pela organização do trabalho – diga-se, em muitos casos, inatingíveis – não consideram, via de regra, as dificuldades encontradas pelos trabalhadores diante do trabalho real. Ao se destruir os grupos operários e/ou coletivos de co-laboração, a solidez da cooperação, confiança e solidariedade entre trabalhadores desvanece no ar, fatores decisivos em qualquer sector – de operários metalúrgicos a médicos especialistas. Determinadas práticas de injustiça estão já banalizadas, dentro das organizações, e tais fatores potenciam-nos a alienação, o estranhamento, a ansiedade, a depressão e, em casos extremos, o suicídio relacionado ao trabalho. O trabalho contemporâneo transformou-se já em um autêntico palco de sofrimento. De há muito que os cravos da vida laboral se foram.

Em 1870 fora exposto no Parlamento inglês – a ninguém menos que a Rainha Victoria – o Relatório às Condições das Classes Trabalhadoras dos Países Estrangeiros. Um informe oficial detalhado sobre as condições laborais com que o imperialismo dominante se depararia em cada país – da Península Ibérica ao Império Otomano, dos EUA à Grécia – à época. A secção sobre Portugal recomenda, efusivamente, os trabalhadores autóctones, pois que: “não bebem muito aos Domingos – e, por isso, trabalham bem às Segundas-feiras”. E porque “se contentam com pouco”. Já em 1880, La Revue Socialiste publicaria um reporte em tudo distinto. Um senhor barbado, que viria a ser globalmente reconhecido, apresentara um conjunto de cem questões sobre as condições de vida e trabalho das mulheres e homens trabalhadores em França, posto que as autoridades públicas – considerava-se – e as entidades oficiais faziam inquéritos sobre tudo (agricultura, finança, comércio) sem se interessarem nunca por saber como viviam os que trabalhavam. Seu nome era Karl Heinrich Marx.

Durante os últimos anos, a equipa do Observatório para as Condições de Trabalho e Vida realizou inúmeras investigações-ações-participantes, de ampla extensão e vasta profundidade, como autênticos inquéritos ao mundo do trabalho no país. Com larga tradição intelectual, desde o fim do século XIX – “enquête ouvrière” – até os dias atuais (da Johnson-Forest de CLR James nos EUA ao operaísmo autonomista dos Quaderni Rossi de Itália), tais estudos aliam a produção de conhecimento, o contato vivo com os trabalhadores e uma revalorização do que as estatísticas oficiam ocultam, constituindo uma ferramenta poderosa de interpretação e transformação social. Com composição interdisciplinar e multiprofissional – com o trabalho de médicos, psicanalistas, psicólogos, sociólogos, historiadores, antropólogos, geógrafos, assistentes sociais, matemáticos estatísticos, engenheiros de produção, professores e investigadores – e membros oriundos de pelo menos três países diferentes, desenvolvemos aí um novo modelo de investigação sócio-histórica global do trabalho baseado, este, em três eixos: a) um programa de pesquisa social teórico-crítico, b) um método empírico reflexivo, com base em “estudos de caso ampliados”, e, c) uma história pública e orgânica ao mundo do trabalho: estudamos já os Professores, Estivadores, Autoeuropa, Aeronautas, Jornalistas e Pessoal de Saúde. O raio-x não é nada auspicioso: país semiperiférico, trabalho barato e declínio nacional.

A situação da classe trabalhadora portuguesa – tal como a descobrimos no terreno –, já muito antes de haver os novos despedimentos coletivos (e reestruturações produtivas) no Porto de Lisboa, na Galp, na TAP e na GroundForce, era, já, terrífica. O índice de exaustão emocional de 65 mil professores do ensino básico e secundário estava elevadíssimo e, depois da pandemia, houve uma avalancha de reformas antecipadas em todo o sector. O desgaste rápido dos tripulantes de cabina encontrou-os para além dos próprios limites e hoje o plano de cortes e contingenciamentos, em plena crise da aeronáutica comercial, atingiu-os em cheio. O distúrbio cardiovascular na força social de trabalho da Autoeuropa é alarmante, para dizer pouco. O sofrimento ético entre o pessoal do trabalho na saúde é um espectro fatal, que deteriora seu nexo psicofísico e a orientação vital para o trabalho essencial. Não se trata, tão-só, dos piores salários da Europa Ocidental – neste aspeto, Portugal é um tipo de “Norte do Sul” ou “Sul do Norte”, em termos globais –, mas de algo muito maior. Por fim, o que o “Maslasch Burnout Inventory” não apreende é que, muito mais do que fatores de adoecimento individual, o chamado “Esgotamento Profissional” (OMS, 2019) envolve uma questão pública – isto é, um problema social – de organização do trabalho vivo. E isto é brutal.

Em tão austera situação, não é tolerada qualquer ilusão relativa ao tão jactado “futuro do trabalho”. O nada admirável “novo mundo do trabalho” divide-se entre os que fazem do lar a nova empresa (escola, escritório, consultório, etc.) e os que, destituídos de quaisquer vestígios de proteção, sequer conseguem gerar rendimento – para si ou para os seus. Até o termo “mundo do trabalho” – i.e., a observação das várias esferas da vida trespassadas pelo “horizonte” laboral – talvez tenha já se exaurido de todo. Quando o trabalho – ou a falta dele – extravasa, e passa a ser um tipo de agenciador de todos os aspetos da vida – em uma era de epidemia e de crise total –, milhões são absorvidos pelo vórtex do “home office”, com a reconversão da “ex-casa” em célula produtiva. As jornadas em muito extrapolam os tempos regulares de trabalho e as demais tarefas preenchem os já tão poucos “espaços” restantes. Paralelamente, há quem sequer logre manter-se numa faina, seja por ter sido demitido – devido à recessão – ou porque a sujeição a turnos brutais acarreta doenças. Para não falar da bestial epidemia de saúde mental que nos aguarda na próxima esquina. Alguns aficionados falam em supostos planos de resiliência social, reconversão verde, transição digital, automação ou revolução do 4.0 como um ardil para se ocultar o pior. Para que haja um real futuro do trabalho – com dignidade, esperança e bem-estar – é urgente revalorizar, i.e., para interpretá-lo e transformá-lo, o liame laboral com futuro. Urge democratizar e desmercantilizar o trabalho como um todo.

Membros fundadores do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, da ESCE/Instituto Politécnico de Setúbal e da FCSH/Universidade Nova de Lisboa

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico​

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