“O que é ilegal offline deve ser ilegal online”: a corrida da UE para regular espaços online

A transição digital, a par da transição ecológica, é um dos grandes pilares existenciais das políticas europeias para as próximas décadas

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Reuters/FRANCOIS LENOIR

Ao princípio, parecia que uma Internet desregulada seria a melhor maneira de proteger um espaço de liberdade. Poderíamos recuar, por exemplo, ao tempo das Primaveras Árabes, em que a Internet parecia trazer a liberdade de informação até onde ela não existia, ou quando nos fascinava o mercado online, onde se podia comparar preços de tudo e permitir aos pequenos negócios um canal para venderem em qualquer parte do mundo. “Mas não é o tempo de hoje”, avisa Maria Manuel Leitão Marques, eurodeputada eleita pelo Partido Socialista. “Olhemos 20 ou 10 anos atrás, e a realidade que estamos aqui a descrever não era esta” - vivemos num novo mundo que é preciso regular.

A transição digital, a par da transição ecológica, é um dos grandes pilares existenciais das políticas europeias para as próximas décadas. É neste contexto que surge o Digital Services Act (DSA), o regulamento (ou lei) dos serviços digitais, cuja proposta apresentada pela Comissão Europeia em Dezembro está a ser analisada pelo Parlamento Europeu (PE). É uma das diferentes peças legislativas que a Comissão está a preparar para pôr alguma ordem no mundo digital; neste caso, os serviços digitais - “o que é ilegal offline deve ser ilegal online”, repete-se como uma espécie de mantra em Bruxelas -, muito próximos dos mercados (que serão contemplados num regulamento-irmão, o Digital Markets Act).

Já antes, em Outubro, o PE tinha aprovado um conjunto de propostas à Comissão para lidar com as actuais deficiências da regulação dos espaços online. Os eurodeputados pedem uma revisão da directiva sobre o e-commerce, a imposição de obrigações preventivas às gigantes plataformas digitais que actuam como gatekeepers do espaço público, regras mais claras para a gestão de conteúdos e publicidade online, assim como uma resposta mais firme aos desafios colocados pela inovação tecnológica, assegurando clareza jurídica e, acima de tudo, respeito pelos direitos fundamentais.

O DSA é um dos regulamentos em estudo com impacto mais visível no quotidiano. A falta de regulação tem efeitos cada vez mais directos (e nocivos) nos ambientes digitais, onde as grandes plataformas vão fugindo à responsabilização. Com a ascensão do big data e Inteligência Artificial, é preciso cada vez mais protecção contra a recolha constante de dados de utilizadores, a construção de perfis e algoritmos sem qualquer transparência e a publicidade online hiperpersonalizada que secou os formatos tradicionais. “O fato à medida matou o pronto-a-vestir”, descreve Leitão Marques. “É muito importante que todos e todas nós que estamos na Internet façamos parte desta discussão. Ela é acerca dos nossos direitos e da protecção dos nossos valores”, sublinha a eurodeputada e antiga ministra da Modernização Administrativa, uma das promotoras da petição “Personalized Ads Zuck”.

“O problema aqui está nos detalhes”, observa Maria da Graça Carvalho, eurodeputada do PSD, que fala em três grandes preocupações na transposição das intenções enunciadas para regulamentos como o DSA: manter os princípios fundamentais sem que se traduzam numa carga burocrática demasiado pesada para as empresas, em particular as pequenas e médias; encontrar um equilíbrio entre regulação e protecção da liberdade de expressão (um desafio de expressões muito diversas, desde logo entre Estados-membros); e garantir uma regulação que deixe espaço para a inovação.

Antiga ministra da Ciência e membro da comissão da Indústria, da Investigação e da Energia do Parlamento Europeu, Graça Carvalho recorda que “a Europa não é competitiva no digital”, acusando já alguns atrasos em termos de infra-estruturas e de formação de pessoal especializado.

Os dilemas da digitalização, entre regulação, competitividade e inovação, não se ficam pelo DSA. A eurodeputada bloquista Marisa Matias, que é relatora-sombra do Data Governance Act - que procura garantir as bases para uma partilha de dados mais segura e está a ser analisado no âmbito da comissão da Indústria -, nota a complexidade deste puzzle que a Comissão tenta montar numa área de evolução galopante, com dossiês “muito técnicos e também muito políticos”. “Estamos a correr atrás do prejuízo”, descreve - mas é preciso cuidado para não “criar instrumentos que nos vão aprisionar no futuro”. 

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