As birras dos adultos
Ficámos num hotel bonito, sossegado e caro, e o Zé decidiu amuar durante dois dias, vá-se lá saber porquê, nunca percebi o que se passava dentro daquela alminha. Ficava de trombas e pronto, fim-de-semana estragado.
Vou dar-vos um exemplo, o José trabalha numa multinacional e foi sempre bem-sucedido. Quando atinge um objectivo, é recompensado com uma promoção. Todavia, quando os seus colegas alcançam reconhecimento igual ou superior, o José não aguenta. Não se atira para o chão a chorar e a gritar como uma criança; fica calado ou, na pior das hipóteses, vai para a casa de banho chorar de frustração. O José não sabe como resolver a raiva que sente — é ciumento e invejoso, e não sabe lidar com isso.
Nunca conheci ninguém tão birrento como ele, e não estamos a falar de uma criança, mas de um marmanjo com quase 30 anos. Se no trabalho o José engole as birras, fazendo o impossível por se manter silencioso, nos outros espectros da sua vida não se coíbe de mostrar a cavalgadura que é. Pior do que as birras que faz, que nos adultos costumamos apelidar de chiliques, são os amuos que aparecem sabe-se lá de onde, talvez de uma infância com excesso de mimo.
Dormiu na cama da mãezinha até aos 14 anos, é claro que isto não fez bem àquela cabecinha. Amua por tudo e por nada. Basta que as coisas não sejam feitas consoante a sua vontade ou expectativa, arranja logo confusões atrás de confusões — não era só comigo. No supermercado, por exemplo, se alguém lhe impede, por distracção, a passagem no corredor das bolachas, mostra-se logo agressivo; no trânsito, arma-se em educador dos condutores que cometam algum disparate, tentando ensiná-los ao murro como se deve assinalar com o pisca uma mudança de direcção na estrada. Este tipo é assim, está sempre disposto a somar alguma confusão evitável às inevitáveis que nos acontecem na vida. Não percebo porque estive tanto tempo com aquela criatura.
Também tem outras manias como a megalomania. Sente-se acima dos outros, dá-se ares de grande importância, sobretudo nas redes sociais, mas não só, é um mestre na autopromoção e vende-se bem, levando muitas vezes os outros a acreditar num valor que não existe. Sinceramente, e em retrospectiva, não lhe encontro qualidades praticamente nenhumas, excepto o facto de ser um especialista nas cunilínguas. Neste aspecto, trata-se de um doutor; o sacana conhece bem o corpo da mulher. Sobre esta actividade em específico, nunca o vi fazer uma birra ou ter um chilique ou amuo. Mas também nunca me recusei a colaborar, verdade seja dita. Capaz de ficar mais de uma hora a dar felicidade oral a uma mulher, nunca se lamentava de dores no pescoço ou nas costas; possuí, e há que reconhecê-lo, um prazer e um talento inatos. Mas infelizmente não havia muito mais de positivo no comportamento daquela criatura.
Cansei-me de tantas manias, e ao fim de um rol infindável de cenas inenarráveis, fomos passar um fim-de-semana fora da nossa cidade. Ficámos num hotel bonito, sossegado e caro, e o Zé decidiu amuar durante dois dias, vá-se lá saber porquê, nunca percebi o que se passava dentro daquela alminha. Ficava de trombas e pronto, fim-de-semana estragado. Tem mau feitio, é isso. A questão é que, como se costuma dizer, eu também não sou flor que se cheire, também tenho as minhas manias e, muitas vezes, depois das birras dele, também tive direito aos meus chiliques, de maneira que a nossa história foi um caso escangalhado.
Podia até ter sido uma história feliz, com dois birrentos a estragar apenas uma casa, mas não, escolhi viver numa casa sem birras de adultos a dobrar, uma casa onde só os miúdos têm direito a fazer birras com regularidade. Uma casa sem estragos constantes causados por adultos. É que uma casa é sempre algo em potência de cair por terra abaixo. E enquanto as birras das crianças são chatas, cansativas, mas inofensivas para a estrutura da casa, as birras dos adultos são capazes de a escangalhar.