Opositores da desregulamentação da edição do genoma denunciam tácticas dos defensores
Uma série de documentos - os CRISPR-Files - foram divulgados pelo Corporate Europe Observatory, relevando os esforços em curso para alterar a regulamentação que equipara esta tecnologia aos OGM.
O Corporate Europe Observatory (CEO), um lobby europeu, divulgou esta segunda-feira uma série de documentos, denunciando o que entende ser uma “batalha” lançada pela indústria da biotecnologia para que a edição genética de plantas e animais (pela técnica conhecida como CRISPR-Cas9) seja excluída das restrições aplicadas aos organismos geneticamente modificados (OGM).
Os documentos agora tornados públicos, num dossier baptizado como CRISPR-Files, revelam, segundo o CEO, as tácticas utilizadas pela indústria para influenciar os Governos dos vários países europeus a aceitar esta nova tecnologia, garantindo-lhe que não serão sujeitas ao mesmo tipo de controlo que os restantes OGM e que não serão identificadas como tal nos rótulos dos produtos destinados ao consumidor final.
Em 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que as técnicas de edição do genoma são modificações genéticas e devem ser reguladas como tal. É esta decisão que os lobbies favoráveis a uma mais generalizada utilização da CRISPR-Cas9 estão agora a tentar reverter.
A estratégia, que dura há já algum tempo, passa, entre outras coisas, pela organização de reuniões para as quais são convidados responsáveis identificados nos ministérios relevantes dos diferentes países, com o objectivo de os sensibilizar para a necessidade de desregulamentação da CRISPR, na perspectiva do CEO.
Estas reuniões (em Setembro de 2019, Janeiro e Novembro de 2020, estando outra prevista para Maio 2021) foram organizadas pela European Plant Science Organisation (EPSO) – organização académica independente com sede em Bruxelas que representa mais de 200 institutos de investigação e universidades de 31 países – e que está a trabalhar com o grupo EuropaBio e a European Technology Platform (ETP) Plants for The Future, ambos ligados, adianta o CEO, ao lobby da indústria da biotecnologia.
Entre os observadores junto da EPSO, que “têm a oportunidade de dar o seu input quando a organização produz uma declaração ou recomendação”, estão empresas como a BASF, a Limagrain, a Bayer ou a Syngenta.
Outra estratégia utilizada tem sido a criação de “narrativas climáticas” para apresentar a tecnologia CRISPR como benéfica – algo que estaria a ser levado a cabo pela task-force Agricultura Sustentável & Inovação, ligada ao think-tank Re-Imagine Europe e financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates, que, de acordo com o CEO, é uma das grandes impulsionadoras da “batalha” a acontecer no palco europeu.
A pressão tem vindo a aumentar nos últimos tempos porque no próximo dia 30 de Abril a Comissão Europeia deverá apresentar um estudo sobre a edição genética pedido pelo Conselho durante presidência da Finlândia. Há indicações de que este estudo poderá ter “'opções políticas’ para alterar as leis europeias em relação aos OGM”. O CEO cita uma investigação dos Friends of the Earth segundo a qual “existem fortes preocupações de que o processo tenha sido capturado pela indústria”.
O estudo será discutido pelos Estados-membros nos Conselhos da Agricultura e Ambiente em Maio e Junho, e nos meses de Junho e Julho o Parlamento Europeu irá votar a estratégia Do Prado ao Prato (Farm to Fork), o que “será um momento decisivo para a posição do Parlamento relativamente a esta questão”.
Um dos pontos levantados pelo CEO é o de que esta nova estratégia europeia para a agricultura, que tem entre os seus objectivos o aumento da produção biológica e a redução drástica de pesticidas, deixou a grande indústria da área a precisar de alternativas – que estariam precisamente nos produtos criados através da tecnologia CRISPR.
A grande divisão que existe neste momento tem a ver com a equiparação do CRISPR/Cas aos OGM. O que é, afinal, a CRISPR e o que dizem os seus defensores? Um dos principais argumentos é o de que este tipo de edição do genoma (que é feita com grande precisão, daí chamar-se “tesoura genética”, e apenas numa área muito específica do ADN da planta ou animal, podendo modificar o genoma sem introduzir ADN exógeno), poderia acontecer de forma natural ou pelo clássico cruzamento de variedades para obter variedades mais resistentes ou mais produtivas.
Mas se as técnicas naturais para conseguir mutações no genoma são mais demoradas e com custos muito mais elevados, a CRISPR, argumentam, permitirá, com rapidez e menores custos, um melhoramento dos alimentos que se produzem hoje no mundo. Se a Europa perder esse comboio, sublinham, acabará a importar alimentos assim alterados feitos por países como os EUA ou a China e sem que seja tecnicamente possível perceber se foram as plantas geradas pela tecnologia CRISPR.
Os críticos da CRISPR afirmam, por seu lado, que esta tecnologia, que intervém directamente no núcleo celular, onde se encontra o ADN, “causa efeitos não pretendidos e levanta outras preocupações” – os documentos da CEO citam, a este respeito, um estudo da organização alemã Testbiotech que alerta para os riscos de alterações genéticas não pretendidas, afirmando que ainda se conhece pouco sobre as consequências.
Esses riscos, dizem os cientistas envolvidos no desenvolvimento da técnica, são quase inexistentes. A discussão – ou a “batalha”, como se quiser chamar – terá o seu próximo capítulo importante com a divulgação do relatório da Comissão Europeia a 30 de Abril.