Governo etíope admite envolvimento da Eritreia no conflito em Tigré
Tropas eritreias são acusadas por organizações internacionais de participarem no massacres de centenas de civis do lado etíope da fronteira.
O primeiro-ministro etíope admitiu esta terça-feira que militares da Eritreia estiveram presentes durante o conflito na região de Tigré, no Norte do país, e sugeriu que podem ter estado envolvidos em abusos contra os civis, como acusam organizações internacionais de direitos humanos. Na véspera, os máximos responsáveis de nove agências da ONU pediram o fim dos ataques contra civis na província fronteiriça com a Eritreia, “incluindo violações e outras formas terríveis de violência sexual”.
“Há relatos de que foram cometidas atrocidades na região de Tigré”, disse o primeiro-ministro e Nobel da Paz, Abiy Ahmed, numa intervenção no Parlamento, em Adis Abeba. Horas depois, afirmou que as tropas eritreias passaram a fronteira por existir a preocupação de poderem ser atacados pelos combatentes da Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT). Os eritreus, explicou, prometeram sair assim que o Exército etíope conseguisse controlar a fronteira.
É a primeira vez que Abiy (que em 2019 recebeu o Nobel precisamente por ter assinado a paz com a Eritreia) parece reconhecer que foram cometidos crimes graves na província de seis milhões de habitantes. A guerra “é horrível”, disse o governante. “Sabemos a destruição que esta guerra causou.” Os soldados envolvidos em crimes de guerra serão responsabilizados, garantiu, sublinhando ainda assim que houve muita “propaganda do exagero” por parte dos chefes da FLPT.
Quatro meses depois de Abiy ter declarado que as suas forças controlavam “totalmente” a cidade de Mek'ele, capital da região, dando por terminada a operação militar que ordenou no início do mês, o conflito não parece ter fim à vista. Com a falta de acesso a jornalistas ou organizações não-governamentais, continua a ser muito difícil ter dados actualizados das vítimas. Mas sabe-se que morreram milhares de pessoas e pelo menos dois milhões foram desalojadas, havendo muitos relatos de massacres.
Na segunda-feira, um comunicado conjunto de nove agências da ONU, do investigador especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos dos deslocados e de duas plataformas que representam várias ONG, apelou às partes em conflito para condenarem de forma explícita a violência sexual e assegurar que as suas forças “respeitam e protegem as populações civis, particularmente as mulheres e as crianças, de abusos dos direitos humanos”.
O conflito continua a obrigar milhares a fugirem das suas casas, com dezenas de milhares de pessoas a chegarem nas últimas semanas às cidades de Shire, Axum e Adwa, em fuga da parte mais ocidental de Tigré, disse o porta-voz adjunto do secretário-geral da ONU, Farhan Haq. Há ainda relatos de pessoas forçadas a fugir da violência nas regiões noroeste e centro da província, acrescentou.
No final de Fevereiro, a Amnistia Internacional divulgou um relatório sobre o massacre de centenas de civis na cidade de Axum, numa operação de tropas da Etiópia e da Eritreia, em Novembro. Através das descrições de 41 sobreviventes e testemunhas do ataque contra as forças rebeldes, a ONG confirmou que os soldados da Eritreia não só estiveram no terreno, como “chegaram à cidade e começaram a matar aleatoriamente”, algo que os dois governos negavam até agora.
Abiy avançou para a guerra a pretexto de um ataque da FLPT a bases militares das tropas federais. A FLPT foi o partido dominante durante décadas no país, até à eleição de Abiy, em 2018.
Um dos quatro partidos regionais que correspondem às tribos mais influentes, a FLPT governava a região onde se concentra a população tigré e estava há muito em rota de colisão com o Executivo federal – uma situação que se agravou com o adiamento das eleições legislativas e presidenciais, por causa da pandemia. Em resposta, as autoridades regionais anunciaram que já não reconheciam o poder central e organização as suas próprias eleições, que Abiy não reconheceu.
Desde o início das operações militares que analistas e investigadores como os do think tank International Crisis Group avisavam que caso a guerra se prolongasse poderia ser “devastadora para todo o Corno de África”, e alertavam para um possível envolvimento da Eritreia em apoio de Adis Abeba. A FLPT e a Eritreia são inimigos jurados desde o terrível conflito que opôs os dois países entre 1998 e 2000.