Declaração de interesses – mas onde está o problema?

Perante o absoluto striptease do que os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos já têm que declarar, qual é afinal o especial problema em indicar as associações de que fazemos parte? Tenho, genuinamente, dificuldade em compreender.

Em 2019, o PAN apresentou uma proposta de alteração à Lei n.º 52/2019 (Lei que aprova o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos), projeto de lei (PJL) esse que visava determinar “a declaração da filiação ou ligação a organizações ou associações ‘discretas’ em sede de obrigações declarativas”. No entanto, a alteração proposta limitava-se a prever que a declaração única de rendimentos, património e interesses inclua “um campo de preenchimento facultativo que permite a menção, ainda que negativa, à filiação ou ligação com associações ou organizações que exijam aos seus aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos seus associados”.

Esta iniciativa legislativa seguiu os seus trâmites, foram consultadas diversas entidades e personalidades com interesse no que debatia, foi debatido em plenário da Assembleia da República em 18.12.2020 e desceu à Comissão de Transparência para o debate na especialidade. É nesse âmbito que compete aos demais partidos debaterem o PJL e para eles contribuírem se assim entenderem.

Foi por isso, neste âmbito e no momento determinado pelo calendário legislativo, que o PSD disse presente no debate em torno deste PJL e apresentou a sua própria proposta de alteração àquela iniciativa legislativa. Proposta essa que procura trazer equilíbrio e equidade à iniciativa que se nos apresentava. Em que medida?

Com duas propostas apenas. Simples.

Primeiro equilíbrio. Se se considera relevante conhecer as ligações associativas dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, não tem sentido algum que essa possibilidade seja meramente facultativa. Se esta informação é relevante, pois ela tem que ser obrigatória, ou nem faz sentido colocar-se. Esta é a primeira trave-mestra da proposta do PSD.

Diga-se que neste mesmo sentido se manifestaram várias personalidades e entidades chamadas a pronunciar-se. O Prof. Luís de Sousa, PhD e investigador ICS-UL, ao dizer que “… esse tipo de obrigação declarativa, não taxativa e de preenchimento facultativo, é um convite à indiferença do declarante e pode resultar numa total opacidade em relação a pertenças institucionais susceptíveis de gerar dúvidas sobre a isenção ou integridade da sua conduta”. Também José Miguel Júdice: “Por isso defendo que a solução legal não deve ser a do PJL, uma mera faculdade, mas uma clara obrigação de revelar se e quando ocorrer a situação.” No mesmo sentido e com acrescida relevância institucional se pronunciou a Procuradoria-Geral da República: “… pelas suas concretas funções deveria impender sobre os magistrados do Ministério Público tal obrigação de declaração, a qual deveria não somente estar prevista especificadamente na lei, como ainda ter natureza obrigatória (e não facultativa)”, e ainda o Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP): “… na opinião da ASJP, essa declaração deve ter natureza obrigatória e não apenas facultativa, sob pena de ser inconsequente para os objetivos de transparência que estiveram na base da aprovação da Lei n.º 59/2019”.

Vistas estas pronúncias, tem-se até alguma dificuldade em compreender as críticas apressadas e sobretudo profundamente desinformadas que têm sido feitas a esta iniciativa.

Depois equidade. Porque o PJL do PAN tinha como objetivo assumido visar as associações que designou como “discretas”, o que não nos parece correto nem defensável, aliás, é o PAN que nomeia Maçonaria e Opus Dei na exposição de motivos do seu diploma. Sendo percetíveis os objetivos, o PSD não se revê numa identificação potencialmente estigmatizante. A lei deve ser geral e abstrata e não persecutória, deve dirigir-se a indivíduos ou organizações abstratamente considerados e não concretamente identificáveis. Daí que a segunda trave-mestra da proposta do PSD defende a extensão desta obrigatoriedade de identificação à pertença a todas e quaisquer ligações associativas. Não compete ao legislador classificar associações como discretas ou secretas, são conceitos indeterminados. Se as ligações associativas são potencialmente geradoras de conflitos de interesses, devem ser conhecidas todas elas e não apenas as que se dirijam a organizações especificamente consideradas.

Aliás, visando atacar esta proposta, António Lobo Xavier disse esta semana que “são piores os benfiquismos ou os portismos do que algumas destas ligações”. Lamento que tivesse falado sem saber conhecer a proposta que comentava porque, precisamente por isso, consideramos que a lei não deve tecer considerações prévias sobre as organizações associativas. Ao se indicar todas elas consideram-se todos os eventuais condicionamentos, sejam eles de que natureza forem. Incluindo clubísticos.

Esta proposta pode naturalmente ser criticada mas não pode duvidar-se da sua intenção genuinamente moralizadora e, devo dizê-lo mesmo, defensora da não estigmatização das organizações identificadas no PJL do PAN, recusando-se a criar uma lei visando organizações concretas.

Aqui chegados, importa agora perceber, como se pergunta no título, onde está afinal o problema?

Quando os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, hoje em dia, já devem tornar pública a totalidade dos seus rendimentos com indicação da respetiva fonte; a declaração de IRS; a descrição dos elementos do seu ativo patrimonial; os bens herdados; o património imobiliário, de quotas, ações e partes sociais de capital em sociedades; os veículos automóveis; as carteiras de títulos e contas bancárias à ordem e créditos concedidos; a descrição das dívidas perante o Estado ou quaisquer pessoas singulares ou coletivas; os cargos sociais que exerçam ou tenham exercido em empresas, fundações ou associações… perante este absoluto striptease, qual é afinal o especial problema em indicar as associações de que fazemos parte?

Tenho, genuinamente, dificuldade em compreender.

Até em conversa com amigos, sempre que intervimos sobre determinada matéria e temos a ela qualquer especial ligação, fazemos a prévia “declaração de interesses”, que não nos inibe de participar, mas torna claro perante todos as especiais ligações que temos ao assunto. Não para impedir, mas para permitir o escrutínio dessa ligação. É apenas isso que se pretende.

E esse é todo o cerne desta questão. O PSD tem tido uma intervenção política nesta área que visa a remoção de obstáculos à atração dos melhores para a vida política. Defendemos que a política se desvie do caminho de funcionalização da função de deputado que tem vindo a ser seguido. Para isso, para podermos reduzir as incompatibilidades e impedimentos, temos que tornar ainda mais transparentes as ligações. Para podermos permitir que as pessoas possam servir o país apenas durante uma fase da sua vida, sem criação de constrangimentos e dificuldades nos seus demais interesses, todos esses interesses devem poder ser objeto de escrutínio.

Aumentar a transparência. Reduzir as incompatibilidades e impedimentos.

É um objetivo político. Legítimo. Sério. Construtivo. Que persegue a visão liberal que o PSD tem da vida pública. Nada tem que ver com perseguições nem a pessoas nem a instituições.

Aliás, convém sublinhar as vezes que forem necessárias que esta declaração apenas se dirige às pessoas que ocupem cargos políticos e altos cargos públicos! Não se dirige à Maçonaria, ao Opus Dei ou a qualquer outra entidade que entenda dever manter secretos os seus membros, práticas ou reuniões. Ninguém tem nada que ver com isso. Se assim entendem, devem continuar a fazê-lo, este diploma não se dirige a essas organizações. Apenas os seus membros que pretendam exercer cargos políticos ou altos cargos públicos é que devem declará-lo.

Parece-me de meridiana clareza e justificação. Aliás,

Como diz o constitucionalista Prof. Jorge Miranda: “Trata-se tão só de um corolário de princípio geral de transparência que deve dominar a vida política, no âmbito de uma democracia pluralista e aberta, em que nada há a esconder ou a ocultar na esfera pública dos titulares dos órgãos públicos … e, para usar uma expressão que costumo empregar, trata-se ainda de uma exigência de ética republicana.

Como considera o Prof. Luís de Sousa: “Numa lógica preventiva, a transparência sobre este tipo de filiação institucional é justificável e tem sido amplamente defendida”.

Como defende a Procuradoria-Geral da República (CSMP), considerando dever este regime ser igualmente aplicável aos magistrados do MP: “Obrigatoriedade que deriva de um imperativo ético que faz recair sobre os magistrados um dever (acrescido) de integridade e transparência, garante de um muito desejável e exigível estatuto público/profissional acima de qualquer tipo de suspeita, no que a ligações e incompatibilidades diz respeito.

Como propugna a ASJP: “Em coerência com o princípio firmado no Compromisso Ético … a ASJP considera que as obrigações declarativas dos juízes devem incluir a revelação da sua pertença às mesmas. Trata-se de revelar publicamente uma condição que pode, em abstrato, condicionar a perceção social sobre a imparcialidade do juiz.

E, já agora, como dizia Mário Martin Guia, antigo grão-mestre da Grande Loja Legal de Portugal: “Nas sociedades democraticamente mais evoluídas os maçons não têm qualquer dúvida em manifestar a sua qualidade de maçon.” Ou António Arnaut, antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano: “Os maçons devem, tendencialmente, arcar com a responsabilidade cívica da sua condição … com o intuito de se evitarem suspeitas sobre a maçonaria, o maçon deve afirmar-se voluntariamente como tal.

Perante tudo isto são acrescidas as dificuldades de compreensão face às críticas de que esta iniciativa legislativa tem sido alvo. A mediatização não justifica a ignorância e a impreparação.

E perante todos estes testemunhos tão transversais quão lapidares, ainda mais sentido faz a pergunta que intitula este texto: mas onde está, afinal, o problema?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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