Bloqueio no Senado dos EUA leva Joe Biden a apoiar reforma do filibuster
Procedimento imortalizado no filme Peço a Palavra, de Frank Capra, impede que uma lei seja aprovada sem o apoio de pelo menos 60 senadores. Para mudar a situação, o Partido Democrata admite fazer uma alteração profunda às regras.
No dia 5 de Janeiro, quando tudo indicava que o Partido Republicano ia manter a maioria de 52-48 no Senado dos EUA, dois candidatos do Partido Democrata venceram as suas eleições no estado da Georgia e viraram tudo de pernas para o ar. Com 50 senadores de cada lado, e com os democratas em maioria na Câmara dos Representantes, o Presidente Joe Biden podia sonhar com a aprovação de propostas marcantes, como a reforma da imigração, a protecção do direito ao voto ou as restrições à venda de armas.
Apesar do empate no número de senadores, o Partido Democrata ficou em vantagem porque, se for necessário desempatar uma votação, a decisão cabe à vice-presidente dos EUA, Kamala Harris – que é, por inerência, a presidente do Senado.
Mas se fosse assim tão simples, o falhanço na aprovação de leis importantes nos EUA na última década não seria um dos assuntos mais comentados na política norte-americana. Tudo por causa de um velho procedimento do Senado, conhecido como filibuster, que na prática só permite a aprovação de leis com o voto favorável de pelo menos 60 senadores.
É esse procedimento (imortalizado no filme Mr. Smith Goes to Washington, em português Peço a Palavra, de 1939) que o Partido Democrata tem de eliminar, ou remodelar, para aprovar propostas com uma maioria simples de 51 senadores.
Falar sem parar
Por causa do filibuster, se um senador de um partido que está em minoria se opuser ao fim do debate sobre uma proposta, o impasse só pode ser desbloqueado se pelo menos 60 senadores aprovarem a passagem à votação final.
Num Senado em que o Partido Democrata dispõe, no máximo, de 51 votos, e em que no Partido Republicano não há mais do que cinco ou seis senadores abertos a dialogarem com a maioria, a fasquia dos 60 votos torna-se inacessível.
Para alterar a situação, o Partido Democrata teria de usar os seus 51 votos para mudar as regras do Senado e modificar a forma como o filibuster pode ser usado pela minoria.
Desde a década de 1970, um senador tem apenas de comunicar a sua oposição ao fim do debate para que o filibuster comece a contar; antes disso, o filibuster só resistia enquanto o senador que o invocou discursasse sem parar – e, quando isso acontecia, geralmente por exaustão, o impasse era quebrado e seguia-se para a votação final.
(Nos últimos anos, alguns senadores – como o republicano Ted Cruz – falaram durante horas a fio no Senado, mas o principal objectivo era marcar uma posição e ganhar mais protagonismo junto do eleitorado)
A pressão da ala progressista do Partido Democrata – impaciente para conseguir aprovar leis importantes antes que o Partido Republicano volte a ter maioria nas duas câmaras do Congresso –, e a declaração pública do Presidente Biden de que não vê com maus olhos a reforma do filibuster, deu um novo impulso ao assunto em Washington.
Com a confirmação de que as leis de imigração que foram aprovadas na quinta-feira vão ser bloqueadas no Senado (e o mesmo futuro aguarda a reforma do direito ao voto e o controlo das armas, por exemplo), o senador democrata Joe Manchin, que se opõe ao fim do filibuster, veio também dizer que admite conversar com o seu partido para mudar o funcionamento da regra.
Se isso acontecer, há três consequências quase certas: o Partido Democrata vai conseguir aprovar leis sem apoio no Partido Republicano; o Partido Republicano vai poder beneficiar da mesma alteração quando regressar à maioria; e o Senado dos EUA vai voltar a ser palco de discursos como o do senador Strom Thurmond, que em 1957 estabeleceu um recorde de 24 horas a falar sem interrupções, alimentando-se a sumo de laranja e pedaços de hambúrguer.