A violação deve ser um crime público

Sendo hoje o dia do pai, acho que devemos pensar como quebrar a corrente do caldo cultural patriarcal que subjuga e diminui as mulheres.

A violação é uma forma brutal de opressão e dominação, que tem em mulheres e crianças a esmagadora maioria das vítimas. É a supressão da liberdade, a transformação de alguém num objeto de entretenimento ou prazer, a coisificação de uma pessoa para uso sexual, é um atentado aos direitos humanos.

As estatísticas dão um vislumbre da realidade, mas não a traduzem. Segundo o relatório anual de segurança interna, o crime de violação é o oitavo com mais participações no nosso país entre os crimes associados à criminalidade violenta e grave. No entanto, quem está no terreno diz que os números ficam muito aquém da crueldade realmente existente. Mais do dobro, dizem as associações de apoio às vítimas. Como podemos fazer mais para combater este crime hediondo? Comecemos pela análise da lei.

A violação é considerada um crime semipúblico em Portugal. Isto significa que para haver uma investigação, é preciso que a vítima faça queixa. Apesar das entidades policiais e os funcionários públicos serem obrigados a denunciar este tipo de crimes e qualquer pessoa o poder fazer por sua iniciativa, não é aberto qualquer inquérito sem a vítima apresentar queixa. Além disso, é um crime com prazo, porque a vítima tem apenas seis meses para o fazer, podendo desistir a qualquer momento. Cada frase deste parágrafo é um problema que temos de corrigir.

Ao contrário do que genericamente se pensa, a maioria dos agressores tem algum tipo de proximidade às vítimas, fazendo muitas vezes parte do seu círculo familiar. Isso significa que a violação é principalmente um crime onde há relações de poder entre o agressor e a vítima, em que é habitual algum tipo de ascendente que não pode ser ignorado, muitas vezes a coabitação. Por isso é que muitas vezes a vítima não apresenta queixa: por medo de represálias, por não ter confiança num sistema judicial que ainda relativiza as agressões sexuais, por estar fragilizada ou em choque. Ou, ainda, por se sentir entregue à sua sorte por uma sociedade que lava as mãos e faz transparecer que o crime é uma questão de vontade da vítima e não um ato que todos condenamos. E a ideia de poder deixar cair a queixa a qualquer momento é propícia às pressões sobre a vítima, muitas das vezes vindas do contexto social e familiar.

Se a violação fosse crime público bastava o seu conhecimento pelas autoridades judiciárias ou policiais para haver uma investigação. E, independentemente da vontade das partes, o processo corre mesmo até ao fim. Atenção, isto não significa haver condenações automáticas, nem a ausência de direitos de defesa mediante qualquer acusação. Apenas quer dizer que, após o apuramento dos factos, se o Ministério Público entender que há motivos para acusação, ela é apresentada, independentemente da vontade da vítima.

Há quem diga que a transformação da violação em crime público pode levar a uma dupla vitimização. Não é um argumento novo, já foi usado quando a mesma decisão estava a ser ponderada sobre o crime de violência doméstica. Acho que aqui podemos dizer que o mais importante é dar segurança às  vítimas, às que hoje não denunciam porque têm medo, porque não se sentem protegidas.

A violência contra as mulheres passou a crime público há cerca de 20 anos. Na altura dissemos que “a ascendência do agressor sobre a vítima e as relações de poder se verificam de forma especialmente intensa, motivo pelo qual é também uma violência entregar a vítima à sua sorte, dizendo-lhe que a decisão de investigar e acusar o crime por si sofrido, depende apenas da sua vontade”. Está na altura de ter a mesma conclusão sobre o crime de violação.

Uma nota final: esta não é uma questão só de mulheres, é coletiva. A totalidade dos acusados pelo crime de violação são homens. Sendo hoje o dia do pai, acho que devemos pensar como quebrar a corrente do caldo cultural patriarcal que subjuga e diminui as mulheres. Não é só a lei que temos de mudar, é também as mentalidades e isso está na cultura de respeito e igualdade que temos de transmitir às crianças e jovens. Acredito que ser pai também passa por isso.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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