Pandemia travou rastreio ao pé diabético: “O medo é que o número de amputações tenha aumentado”

Sociedade Portuguesa de Diabetologia teme efeitos da paragem dos rastreios do pé diabético e dos rastreios à retinopatia durante a pandemia. Presidente da Sociedade alerta também para a necessidade “emergente” de alargar programa grátis de bombas de insulina aos doentes adultos.

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Nuno Ferreira Santos

Por ano são diagnosticados em Portugal cerca de 60 mil novos casos de diabetes. “É quase um estádio de futebol, dos grandes, que enche”, diz o presidente da Sociedade Portuguesa de Diabetologia, para se ter uma ideia da dimensão da doença. Em entrevista ao PÚBLICO João Raposo diz que ainda há muito por fazer. É preciso quebrar estigmas, aumentar rastreios, dar mais acesso à tecnologia, valorizar a educação como base do sistema. E há ainda os efeitos da pandemia que terão de ser avaliados. “Em termos de hospitalização, o medo é que, por exemplo, o número de amputações tenha aumentado”, admite. Esta quinta-feira arranca o 17.º Congresso Português de Diabetes.

Portugal tem mais de um milhão de portugueses com diabetes. Quantos diagnósticos se fazem por ano?
Desse mais de um milhão, há cerca de 400 mil que se calcula que não sabem o seu diagnóstico. Anualmente os diagnósticos têm andado à volta dos 60 mil. Para termos uma ideia da dimensão é quase um estádio de futebol, dos grandes, que se enche de novas pessoas com diabetes.

E a pandemia trouxe muitos desafios.
Houve muita adaptação às teleconsultas e consulta telefónica. Até gostamos de mostrar que a diabetes foi um bocadinho um exemplo de sucesso, de como isso é possível. Isto resulta para uma percentagem razoável de pessoas, mas há outras que ficam excluídas. Gostávamos de ter a certeza de que ninguém tinha ficado para trás neste ano de pandemia.

E ficaram?
E ficaram de certeza. As pessoas que não tiveram acesso fácil às consultas telefónicas, que vivem isoladas, as mais velhas sem acesso a tecnologia, pessoas com pior compensação que normalmente já fogem um bocadinho do sistema de saúde, pessoas que eventualmente têm algumas complicações da diabetes que precisavam de ser rastreadas. Já pedimos os dados.

O que esperam encontrar?
Provavelmente vamos ter menos diagnósticos feitos, porque estão muito dependentes de se as pessoas foram ou não fazer análises de rotina ou de pré-operatório. Em relação às consultas talvez tenhamos um número semelhante, porque houve transição das consultas presenciais para não presenciais. Em termos de hospitalização, o medo é que, por exemplo, o número de amputações tenha aumentado, sabendo que rastreio do pé diabético esteve interrompido na maior parte das unidades de cuidados de saúde primários. Provavelmente o número de rastreios à retinopatia diminuiu significativamente neste ano de pandemia, com consequências para uma percentagem das pessoas. Se não foi diagnosticado um agravamento ou uma forma grave que necessitaria de um tratamento mais precoce, provavelmente [o problema] vai avançar e teremos em Portugal um agravamento da situação oftalmológica.

Haverá uma factura futura.
As pandemias tradicionalmente significam que se ultrapassa a capacidade de resposta dos sistemas com impacto na resposta de saúde global. Há um outro termo que é “sindemia”, que é quando temos a pandemia da covid juntamente com outras pandemias como a diabetes. Temos aqui um potencial de gravidade muito significativo que não se resolve num plano fácil de recuperação, mas exigimos que haja um plano de recuperação.

Este ano também se assinala o centenário da insulina.
Estes 100 anos de história permitem-nos perceber que precisamos de um outro padrão de cuidados que esteja mais adequado a estas doenças crónicas. Ainda temos uma medicina que tenta responder à doença aguda.

Mas a diabetes pode ser vista como um sucesso em Portugal, tendo em conta as outras doenças crónicas.
Temos há muito tempo o Programa Nacional de Diabetes, somos aí apontados como um bom exemplo. Temos estruturas muito activas em termos de sociedade e desta relação, mais as estruturas de cuidados de saúde, tem-se discutido muito o padrão de cuidados. Isso acompanhado do Observatório da Diabetes, com os relatórios anuais, permite também mais um ponto de discussão e idealmente de uma visão estratégica a curto, médio e longo prazos para percebermos se estamos a caminhar num bom sentido ou não e definirmos opções estratégicas, que é o que exigimos também do nosso Ministério da Saúde.

Será pela parte da prevenção, dado o aumento progressivo da diabetes?
A resposta em saúde, mesmo às pessoas que já tem o diagnóstico, ainda não é satisfatória. Ainda não temos um programa de rastreio sistemático de retinopatia a cobrir uma boa parte da população com diabetes.

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Qual é a cobertura?
Calcula-se que ande nos 60%. Provavelmente também a resposta do pé [diabético] é assimétrica no país e há necessidade de maiores investimentos na tecnologia que dá suporte à gestão da diabetes, nomeadamente as bombas de insulina.

Houve uma grande pressão no sentido de as bombas de insulina serem alargadas a mais pessoas.
O programa de colocação de bombas de insulina é relativamente recente em Portugal e começou bem, de uma forma controlada no sentido de se perceber como se pode fazer o concurso, que centros as podem colocar, escolher bem a população. Segmentou-se nos primeiros anos a população pediátrica. A necessidade de alargar as bombas de insulina à população adulta com diabetes tipo 1 é realmente emergente, porque não faz sentido que estejam fora de algo que lhes é benéfico.

De quantas pessoas falamos?
O cálculo das pessoas com diabetes tipo 1 não é conhecido com o grau de certeza que gostaríamos, mas serão cerca de 50 mil pessoas – das quais 4000 a 5000 estarão na idade pediátrica. A bomba de insulina não é a solução para todos, numa perspectiva optimista talvez 50% precisem. Estamos a falar de 25 mil ou 20 mil bombas de insulina. Tem de se fazer a estratégia a médio prazo, porque não se colocam 20 mil bombas de insulina num ano.

Acha que isso não aconteceu, porque tem que ver com o preço?
Tem que ver com factores económicos evidentemente, mas que não podem ser a primeira barreira. Temos de pensar que é acesso a cuidados de saúde e termos a mesma visão que temos em relação a outras doenças. Não discutimos se um pacemaker é barato ou caro, assumimos que é algo indispensável para a vida das pessoas. Portanto se este é o melhor tratamento ou o tratamento mais adequado a uma proporção significativa das pessoas com diabetes tipo 1, temos de garantir que temos recursos para os colocar.

É uma desvalorização da diabetes ou foi a evolução nas insulinas injectáveis que fez com que as bombas ficassem para segundo plano?
A diabetes é uma doença banal pelos números e, se aprendemos alguma coisa com a pandemia, foi perceber como ao fim de um ano os números já não nos começam a dizer nada. Ainda por cima, as pessoas com diabetes tipo 1 são uma minoria das pessoas com diabetes e, portanto, a visão da comunidade é a de que a diabetes é uma doença banal em que as pessoas têm uma culpa significativa por ter a doença e que estariam muito melhor, se tivessem a alimentação que deveriam e se fizessem actividade física.

Ainda há muito estigma?
Tem um estigma muito significativo. Quando dizemos que a diabetes é uma doença silenciosa, há várias dimensões deste silêncio. Silenciosa, porque muitas vezes não dá sintomas, porque quem a tem não quer dizer muitas vezes que a tem, porque o ambiente político também não gosta de falar dela. Gostamos de mostrar o que vamos vencendo e aqui parece que não há nada a fazer e mais vale não falar dela. Temos vários níveis de siêncio que têm de ser quebrados.

Em relação aos efeitos da pandemia nas pessoas com diabetes, o que detectaram?
A percepção que tivemos é que houve uma melhoria fantástica das pessoas com diabetes nos primeiros meses. Houve claramente uma preocupação em estar melhor e em condições para em caso de se ser infectado ter a melhor resposta. Depois aconteceu um bocadinho o mesmo que à sociedade em geral. Percebemos que as pessoas voltaram um pouco à sua linha anterior. A diabetes espelha o movimento da sociedade e de como as mensagens do medo deixam de funcionar ao fim de algum tempo. Na nossa comunicação de covid continuamos a basear-nos muito no medo e percebemos que isso não funciona. Na diabetes procuramos usar as outras ferramentas que temos na educação, para as pessoas perceberem que têm de estar compensadas, não pelo medo de ter covid-19, mas porque é bom para elas. Trabalhar a motivação das pessoas para aderir a um comportamento é melhor do que ameaçá-las.

E resulta?
Resulta mais do que a ameaça do medo. Não há receitas de 100%. O que tem de se fazer na diabetes, como provavelmente tem de ser fazer na covid, é ir inovando na mensagem, usando estratégias diferentes de comunicação e percebendo que a comunicação é mais do informar. É outra exigência que fazemos enquanto sociedade, que este trabalho de educação seja devidamente reconhecido como útil e fundamental para o sucesso. Nesta altura, temos na nossa sociedade uma subvalorização do factor humano, seja do lado da equipa da saúde, seja no papel do doente, com um salto para frente a dizer “a solução é mais tecnologia, é mais um novo medicamento”. Passa certamente por aí, mas, se não tratarmos da base deste sistema, nunca mais vamos lá chegar.

Porque é que a diabetes é um factor de risco para a covid?
Considera-se que [a diabetes] produz nas pessoas uma inflamação crónica não muito intensa, mas que é um factor de risco na resposta do organismo a outras inflamações, das quais as infecções são o melhor exemplo. Na covid sabemos que o agravamento das situações tem muito que ver com uma cascata inflamatória de que de repente se perde o controlo. Por outro lado, a diabetes tem esta situação da descompensação metabólica. Se não estiver devidamente compensada, os níveis de açúcar no sangue sobem, o que significa que o organismo não sabe utilizar bem a energia. Se não usar e mobilizar bem a energia, vai perder a capacidade de resposta que é necessária numa situação de infecção. Depois, essa subida dos níveis de açúcar no sangue tornam o nosso ambiente mais favorável à perpetuação de infecções.

É possível avaliar quanto mais risco tem uma pessoa com diabetes de ser internada em cuidados intensivos, se tiver covid?
Há dados internacionais que mostram que são duas a cinco vezes mais o risco de ir a cuidados intensivos. Estando em cuidados intensivos há também um risco maior de morrer, cerca de duas a três vezes mais. No nosso país os dados que analisámos eram dos dois primeiros meses e só deu para ter uma ideia da proporção de pessoas que estavam em internamento e em cuidados intensivos. Está pedido o acesso aos dados até ao final do ano passado.

As pessoas com diabetes estão incluídas na segunda fase da vacinação contra a covid, embora muitas já tenham sido vacinadas pela idade e pelas outras doenças de risco da primeira fase.
A mensagem não foi feliz por parte das autoridades e tentámos melhorar esse padrão de comunicação. As pessoas com diabetes sentiram-se excluídas da primeira fase e apesar de tudo estavam lá. Das pessoas com doença renal provavelmente cerca de 40% têm diabetes. Mais de 30% das pessoas que estão internadas por doença cardíaca, doença coronária, AVC têm diabetes. Há taxas calculadas de 30% a 50% das pessoas que têm doença pulmonar crónica obstrutiva e que têm diabetes. Portanto, não se passou a mensagem que a diabetes estava [na primeira fase]. Esta hierarquia de doenças é complicada do ponto de vista de sociedade civil, em que parece que há umas doenças prioritárias em relação às outras.

Não havendo vacinas para todos, a escala foi razoável?
Não houve uma posição da SPD, mas fizemos uma análise dos esquemas de vacinação de outros países. A maior parte usou o critério da idade simples, porque fez uma associação entre mortalidade hospitalar covid e a idade que é um factor dominante mesmo na presença de outras doenças que aumentam o risco de mortalidade. Mas é um critério muito transparente, muito fácil de montar.

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