Numa coincidência rara, dois Van Gogh chegam à praça em Março

O desenho La Mousmé (1888) e o óleo Cena de rua em Montmartre (1887) estão entre as escassas obras do pintor holandês que ainda se encontram na mão de coleccionadores privados.

<i>Cena de rua em Montmartre</i>
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Cena de rua em Montmartre Sotheby's
<i>La Mousmé</i>
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La Mousmé Christie's

A Christie’s de Nova Iorque vai levar a leilão, já esta segunda-feira, um desenho raro de Vincent van Gogh (1853-1890), La Mousmé, realizado em Arles, França, no Verão de 1888. A obra integra uma colecção de 12 criações que o pintor holandês ofereceu ao artista australiano John Russell (1858-1930), então a viver na Bretanha.

Desenhado a lápis e tinta marron, La Mousmé (“Rapariga japonesa”) representa uma jovem ama não identificada (há quem defenda tratar-se da sobrinha de uma empregada de Van Gogh). Mede 31,3 por 23,8 centímetros, e a Christie’s estima que possa valer entre sete e dez milhões de dólares (5,78 a 8,25 milhões de euros).

“Trata-se de um trabalho incrivelmente raro. Quando o vi ao vivo pela primeira vez, fiquei muito emocionada”, disse ao magazine ARTnews Giovanna Bertazzoni, responsável da leiloeira pelo departamento de arte dos séculos XX e XXI. A venda de La Mousmé vai ser feita no âmbito do leilão Colecção Familiar: Trabalhos sobre papel, de Van Gogh a Freud.

O actual proprietário de La Mousmé é o coleccionador e negociante de arte londrino Thomas Gibson. Todos os restantes 11 desenhos que o autor de Os Girassóis ofereceu a John Russell – dois retratos e nove paisagens – estão na posse de diferentes museus norte-americanos.

O artista australiano acabaria por vender La Mousmé na década de 1920, num leilão em Paris. Em 1928, o desenho foi parar à posse de um casal judeu de Amesterdão, Kurt e Henriette Hirschland. Durante a Segunda Guerra Mundial, o desenho esteve à guarda do Museu Stedelijk, na mesma cidade dos Países Baixos, tendo regressado às mãos da família Hirschland em 1956. Em 1983, foi adquirido por Thomas Gibson.

O site da Christie’s explica que La Mousmé foi inspirado pela novela Madame Chrysanthème (1887), de Pierre Loti – que originou também a famosa ópera de Puccini Madame Butterfly –, e expressa o interesse que Van Gogh, tal como muitos outros artistas e amantes da arte na França de então, manifestava pela arte e pela cultura japonesa – daí o título ‘mousmé’, retomando o modo como Loti nomeou a jovem mulher japonesa da sua novela (Kikou-San). “O desenho é uma espécie de interpretação do mesmo tema de Madame Chrysanthème”, defende Giovanna Bertazzoni. A obra encena a relação amorosa de uma jovem japonesa com um oficial da marinha vindo do Ocidente que se fixa naquele país.

O desenho que agora vai a leilão em Nova Iorque é, de resto, uma das três La Mousmé que Van Gogh realizou cerca de dois anos antes da sua morte, encontrando-se os outros no Museu d'Orsay, em Paris, e no Museu Nacional das Belas Artes Pushkin, em Moscovo.

Um passeio bucólico em Montmartre

O segundo Van Gogh que em Março irá à praça é Cena de rua em Montmartre. Será leiloado no dia 25 pela Sotheby’s de Paris. Medindo 46,1 por 61,3 centímetros, este óleo sobre tela foi pintado na Primavera de 1887, quando o artista vivia com o seu irmão Theo na capital francesa.

Sob um céu azul-cinzento de Inverno, Van Gogh recria uma cena do quotidiano de um bairro da Paris ainda rural e bucólica desse final do século XIX, com um casal adulto a passear e duas crianças a brincar junto a um dos moinhos do parque La Galette – um deles sobreviveu até hoje, sendo a imagem de marca de um restaurante de Montmartre.

Esta pintura “é um testemunho muito importante do que era Montmartre no final do século XIX, e da sua paisagem muito bucólica”, disse à AFP Aurélie Vandevoorde, responsável pelo departamento de Arte Impressionista da Sotheby’s, acrescentando que se trata de “um exemplar raro” da série de Van Gogh sobre aquele bairro. “É muito provável que [o leilão] vá suscitar muito interesse junto dos coleccionadores particulares, dos grandes coleccionadores de Van Gogh que estão um pouco por todo o lado, mas também junto de museus e instituições”, acrescentou Vandevoorde.

A tela, também pertencente a um privado, e que só agora está a ser mostrada publicamente pela primeira vez (era apenas conhecida pela sua referência em catálogos, mas apenas numa versão a preto-e-branco), poderá render entre cinco e oito milhões de euros.

Antecedendo a venda em Paris, em directo e com transmissão via Internet para Londres, Nova Iorque e Hong Kong, Cena de rua em Montmartre vai estar exposta em Amesterdão – onde os responsáveis pelo Museu Van Gogh estão a manifestar “um especial interesse pelo seu estudo”, disse à AFP Claudia Mercier, comissária da leiloeira francesa Mirabaud Mercier, à qual o proprietário da pintura confiou a venda –, e depois também nas outras cidades referidas.

A leiloeira francesa explica ainda que a pintura permaneceu sempre na casa da família proprietária desde que foi adquirida, por volta de 1920.

No itinerário estético de Van Gogh, esta pintura “marca um ponto de viragem, uma experiência expressionista através do uso da cor, com o objectivo de criar uma impressão que vá para além da transcrição da realidade”, nota o diário francês Le Figaro sobre Cena de rua em Montmartre.

Antes dos leilões do mês de Março, nos quais as duas obras de Van Gogh vão certamente concitar muitas atenções, a última venda em leilão de uma pintura do artista holandês – recorda o Le Figaro – aconteceu em 2017, na Christie’s de Nova Iorque. Laboureur dans un champ (1889) rendeu então 81 milhões de dólares (66,83 milhões de euros, ao câmbio actual).

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