A defesa dos direitos humanos paga-se com a vida na Colômbia
A vida dos activistas sociais colombianos nunca esteve tão em risco como nos últimos anos. O Estado tarda em reocupar as regiões abandonadas pelas FARC e deixam as populações desprotegidas.
Rodrigo Salazar Quiñones saiu de sua casa pela última vez por volta das 11h30 da manhã de 9 de Julho de 2020. O homem de 42 anos foi abordado por outros dois que dispararam vários tiros assim que se aproximaram. Quiñones era um líder indígena no município de Tumaco, no departamento de Nariño (Sudoeste da Colômbia), e a sua morte foi um castigo aplicado pelos “Contadores”, um cartel do narcotráfico, por ter construído um portão para limitar as entradas na aldeia indígena a fim de evitar a propagação da covid-19. O portão prejudicava as movimentações do gangue na região.
O assassínio de Quiñones, relatado num relatório recente da Human Rights Watch (HRW), é um exemplo do perigo que representa ser activista social na Colômbia. Desde 2016, mais de 400 pessoas com trabalho público em várias áreas de actuação foram assassinadas na Colômbia, de acordo com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Os alvos desta ofensiva são líderes comunitários, indígenas, activistas pela defesa de direitos humanos, como ambientalistas ou promotores dos direitos LGBTI, e até sindicalistas.
Paradoxalmente, o aumento das ameaças ao activismo social na Colômbia coincide com a assinatura do acordo de paz entre o Estado e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), em 2016, que pôs fim a um conflito com mais de meio século. Com o desarmamento dos guerrilheiros e a saída de batalhões de centenas de combatentes de áreas antes ocupadas foi deixado um enorme território que, pela primeira vez em décadas, o Estado poderia voltar a controlar.
Isso não tem acontecido. Na verdade, os pontos do acordo em que as autoridades mais se concentraram são aqueles relacionados com a deposição das armas e a neutralização das FARC. Por cumprir estão aspectos determinantes relacionados com a reforma da propriedade das terras e a política de substituição de cultivos ilícitos. Em muitas das regiões ocupadas pelas FARC, os guerrilheiros obrigavam os camponeses locais a cultivar folha de coca, uma vez que o tráfico de cocaína passou a assumir uma fatia cada vez mais relevante dos rendimentos da organização nos últimos anos.
Com a saída de cena das FARC, o cenário tornou-se ainda mais complexo. O caminho ficou aberto para que grupos de narcotráfico, outras organizações terroristas e dissidentes da antiga guerrilha competissem pelo acesso às plantações de coca. A expectativa criada pelo acordo de paz era que as cerca de 200 mil famílias colombianas que dependiam da plantação de culturas ilícitas pudessem trocá-las por produções dentro da lei.
A falta de capacidade e empenho do Estado em promover o processo de substituição do cultivo da coca acabou por oferecer ao narcotráfico um reflorescimento que poucos previam há alguns anos. Estima-se que em 2019 tivessem sido cultivados 154 mil hectares de coca em todo o país, o que representa uma subida acentuada face aos 48 mil que existiam em 2012, de acordo com números citados num relatório recente do International Crisis Group.
Combate pelo território
As dinâmicas da violência na Colômbia são, no entanto, mais complexas do que a simples plantação da planta da coca. Um factor que parece ser determinante é a ausência e a fragilidade das instituições estatais em muitos territórios. Nesse contexto, acabam por ser organismos da sociedade civil, como as Juntas de Acção Comunitárias ou os conselhos indígenas, a assumir muitas das funções que deviam ser da responsabilidade do Estado, nota a HRW.
Enquanto tentam suprir essas carências vão colidindo com os interesses do narcotráfico ou de organizações paramilitares, como o Exército de Libertação Nacional, que florescem onde o Estado não existe.
“Os grupos armados oprimem frequentemente os defensores dos direitos humanos e tentam utilizá-los, sob coacção, para impor as suas próprias ‘regras’ nas comunidades. Isso aumenta a possibilidade de os grupos os atacarem por incumprimentos reais ou percepcionados dessas ‘regras’, ou por um suposto apoio a uma parte contrária nos conflitos locais que se desenvolvem em muitas zonas do país”, concluem os investigadores da HRW.
Os assassínios de activistas ocorrem por motivos diferentes dependendo da região do país. Na província do Norte do Cauca, por exemplo, os principais alvos são os líderes indígenas nasa que tentam impedir o domínio das redes do tráfico de droga nas suas terras. No departamento de Caquetá, há relatos de elementos pertencentes a Juntas de Acção Comunitária assassinados por dissidentes das FARC que se mantêm armados, em retaliação pelas ligações desses activistas a ex-guerrilheiros que agora ingressam na vida civil.
O trabalho destes activistas nunca foi pacífico na Colômbia. Em 2019, uma jornalista radiofónica de Caquetá, que viu o pai e o irmão assassinados por grupos paramilitares ligados aos cartéis, resumia ao PÚBLICO o perigo de desenvolver estas actividades: “Ser líder social em Caquetá é como ser um dinossauro, e sabemos bem o que aconteceu aos dinossauros.”
Esta realidade é sobretudo rural e diferente da violência urbana dos cartéis de droga que assombraram a Colômbia nos anos 1990 e, por isso, passa ao lado da generalidade da população. “A violência contra os líderes sociais concentra-se precisamente nas regiões marginalizadas e atingidas pelo conflito armado”, explica o director do Instituto Colombiano-Alemão, Stefan Peters, numa entrevista à Deutsche Welle.
Ao Estado exige-se um maior empenho e interesse na protecção destes activistas, bem como um compromisso com todos os termos do acordo de paz. O Presidente Iván Duque, um conservador, foi eleito em 2018 como um forte crítico do tratado assinado pelas FARC – que foi rejeitado em referendo.
O director da HRW para as Américas, José Miguel Vivanco, contou ao El País o que lhe disse Duque numa reunião este mês em que apresentou os números de homicídios: “O argumento principal do Presidente Duque é o de que na Colômbia existem oito milhões de líderes sociais, o que sugere, ainda que o Presidente não o tenha dito explicitamente, que proteger todos os líderes sociais do país é uma tarefa praticamente impossível.”
Quiñones foi vítima dessa ausência de protecção. Meses antes de ser assassinado, tinha visto a sua escolta pessoal ser reduzida de três equipas e um veículo blindado a apenas uma e um telefone. Estava sozinho quando morreu.