Lento, rápido, sonâmbulo: a pandemia trocou-nos as voltas ao tempo
Sem planos à vista, os dias tornaram-se iguais, assombrados por uma “espécie de fantasma”. O espaço onde os nossos dias se desenrolavam contraiu-se. A ideia de tempo é abstracta e maleável, mas há factores (como o stress e a idade) que contribuíram para esta sensação de que até o tempo ficou diferente durante a pandemia. E, por entre o imparável tiquetaque dos relógios, surge outra questão: quem gere o nosso tempo em alturas de crise?
Quando a pandemia chegou, não demorou a fazer-se sentir: as rotinas estilhaçaram-se, o nosso espaço encolheu, a escolha dissolveu-se em dias iguais e o receio instalou-se a nosso lado. Tudo isso contribuiu para que olhássemos para o tempo de forma diferente: desabituados do quotidiano que levávamos até então e privados de fazer planos sem amarras, houve quem sentisse as horas e os dias a arrastarem-se na incerteza, mas houve também quem sentisse que passavam a voar. Para outros, surgiu uma dimensão mais paradoxal: o ano passou a correr, mas pareceu uma eternidade. Um ano volvido desde que o SARS-CoV-2 passou a fazer parte das nossas vidas — contaminando as conversas, as notícias, as preocupações —, a necessidade de nos adaptarmos às restrições e a este novo tempo parece interiorizada. Mas agora, com a pandemia ainda sem fim à vista, trata-se de um “jogo de resistência”.
Este é um tempo distorcido, como no quadro surrealista A Persistência da Memória, de Salvador Dalí. (Houve quem comparasse os relógios derretidos de Dalí à teoria da relatividade geral de Einstein, mas o pintor dizia que tinha sido meramente inspirado no “mole, extravagante, solitário, paranóico-crítico queijo camembert do espaço e do tempo”.) É um tempo pervertido pela nossa ideia do que é o tempo e, agora, pela pandemia — não pelo vírus em si, mas pelo efeito que as restrições tiveram em nós. Os ritmos mudaram e ficaram tingidos por esta existência pandémica. “Existe uma espécie de fantasma que está à volta”, descreve a escritora Lídia Jorge.
O antropólogo alemão Felix Ringel estuda o tempo. Acredita que “foram as medidas tomadas contra a propagação do vírus que se tornaram mais relevantes na forma como a nossa experiência de tempo foi afectada”. Essa percepção foi sofrendo alterações com cada confinamento — no Reino Unido, onde Ringel vive e trabalha, é já o terceiro confinamento; em Portugal, é o segundo. Não afecta só o dia-a-dia: “Estas restrições sem precedentes tiveram um efeito no quotidiano, mas também perturbaram o nosso ciclo anual: não pudemos celebrar a Páscoa, o Natal ou os aniversários.” Há quem vá fazendo listas com os marcos a celebrar quando a pandemia der tréguas. “Teríamos de celebrar durante três meses seguidos, todos os dias”, brinca o professor universitário da Universidade de Durham.
O que levou, então, a estas diferentes percepções do tempo? “A nossa noção de espaço foi limitada, a nossa mobilidade tornou-se confinada, estamos todos em quarentena em casa — e a casa deixou de ser o sítio aonde adoramos voltar depois de um longo dia para ser o único sítio em que podemos estar”, justifica o antropólogo. A monotonia apoderou-se dos dias. Para quem enfrentou situações mais difíceis, como a perda de um emprego ou de alguém próximo, os ponteiros do relógio podem parecer ter teimado em não avançar. Esta sucessão de acontecimentos, “como o espectáculo da morte permanente, a ameaça da morte e da infecção, faz-nos sentir como se estivéssemos mesmo numa dobra do tempo”, teoriza a escritora Lídia Jorge. “A ideia que tenho é que estamos numa prova existencial imensa.”
A desorientação chegou a todos. Ainda em 2020, o primeiro-ministro, António Costa, falava no confinamento geral do “ano passado” e no fecho das escolas do “ano passado”. Desnorteados nesta bússola do tempo, houve mais tempo passado em solidão, em isolamento. “Não sei se em reflexão, mais será em distracção. Por outro lado, nunca sentimos tanta vontade de abraçar e beijar os nossos”, afirma a filósofa Maria Filomena Molder. As nossas escolhas tornaram-se limitadas. “Tomámos por garantido que as nossas necessidades sociais seriam sempre asseguradas, que podíamos sempre encontrar-nos com as pessoas, e isso foi-nos retirado”, continua Felix Ringel. “Todos tivemos de nos adaptar a algo sem precedentes.”
O tempo permeia as nossas vidas desde sempre, apercebendo-nos ou não da sua existência subjectiva em nós. Reduzimo-nos assim à questão que o físico italiano Carlo Rovelli deixa no livro A Ordem do Tempo: “Somos nós que vivemos no tempo ou é o tempo que vive em nós?”
O tempo não é o que pensamos
Comecemos, então, por definir o tempo. No dicionário, é poeticamente definido como uma “série ininterrupta e eterna de instantes”. Do ponto de vista da física, o assunto torna-se mais complicado: o tempo não é uma sucessão homogénea ao longo da qual acontecem coisas; o tempo não passa de igual forma em todo o mundo; e não se pode separar o tempo do espaço. Para Carlo Rovelli, deve abandonar-se a ideia de tempo “como fluxo inerte ao longo do qual se abre a realidade”. O tempo, explica ao P2, é a “contagem de acontecimentos” e não há um tempo universal igual para todos. Num nível fundamental, nem existe tempo: a impressão de que o tempo corre só faz sentido nas nossas escalas macroscópicas, porque “olhamos o mundo de forma grosseira”. Pode parecer contra-intuitivo, mas também o terá sido para quem, de pés assentes na Terra, ouviu pela primeira vez dizer que ela se movia a milhares de quilómetros e que não era o centro do Universo.
Mesmo o tempo marcado nos relógios não é igual, ainda que tendamos a acreditar que sim. O tempo passa mais rapidamente numa montanha do que num vale, por exemplo, ainda que a diferença seja ínfima — só perceptível nos relógios mais precisos. “Não podemos pensar o tempo como se houvesse um grande relógio que marque a vida do Universo”, escreve Rovelli no livro A Realidade não É o Que Parece. Trata-se antes de algo local: “Cada objecto do Universo tem o seu próprio tempo que passa, e o que determina este tempo é o campo gravitacional.”
Cada um de nós viveu este ano difícil de forma diferente, nota o físico italiano. “A nossa percepção da rapidez a que o tempo passa depende daquilo que fazemos, porque intuitivamente contamos o tempo ao contar os eventos que acontecem no nosso cérebro”, comenta. Se é algo que nos agrada, o tempo parece “voar”; se nos aborrece, parece que não acaba — a pandemia tem uma conotação negativa e pode contribuir para este sentimento de arrastamento do tempo. Mas encontrando-se formas de se distrair e se manter ocupado, o tempo pode parecer passar mais rapidamente. Nada de novo, já Albert Einstein o dizia — e mostrava-nos também que não podemos separar o tempo do espaço. Rovelli sintetiza: “Uma hora em que nos sentimos aborrecidos é tão mais longa do que uma hora de que estamos a gostar. Não precisámos de uma pandemia para nos apercebermos disso.”
Isso mesmo mostra um estudo feito na Universidade John Moores de Liverpool: “mais de 80% dos inquiridos sentiram mudanças na forma como o tempo passou” durante o confinamento. A pandemia “teve um impacto significativo na percepção das pessoas de quão rápido passava o tempo, comparado com a percepção prévia ao [primeiro] confinamento”. Publicado na revista científica Plos One no ano passado, o estudo faz a ligação entre a aparente velocidade do tempo e as emoções, o número de tarefas diárias e o nível de interacção social, com base nas respostas a um inquérito feito no Reino Unido. As pessoas mais velhas, com mais stress, menos atarefadas ou menos satisfeitas com as suas interacções sociais eram as mais propensas a sentir que o tempo passava devagar.
A pandemia levantou o véu do tempo: sem certezas de quando acabará, vimo-nos obrigados a adaptarmo-nos, a fazer uso do tempo que se poupava em deslocações ou a vê-lo subitamente preenchido com ainda mais tarefas — ou ainda a ter demasiado tempo livre para o vazio em mãos. “Curiosamente, o tempo não foi distorcido numa só direcção”, lê-se no estudo – ora era mais ligeiro, ora mais lento. O tempo, como tudo, é uma experiência subjectiva. Os que sentiam que os seus dias passavam a correr tendiam também a sentir que as semanas passavam a voar. Já “uma maior insatisfação com os níveis de interacção social está associada a uma sensação de que o tempo passa mais devagar”. Uma das dicas deixadas no estudo para quem quer “acelerar” o tempo é aumentar a quantidade de tarefas diárias: “Reduz o aborrecimento e a atenção que se dá ao tempo.” Sempre com cuidado para não se atravessar a fronteira entre o prazer e o stress, que tem o efeito contrário.
Para a filósofa Maria Filomena Molder, esta mudança na percepção do tempo — que pode ser “cheia ou vazia” — não é uma garantia: “Não acho que a pandemia alterasse a nossa percepção do tempo, embora talvez tenha intensificado não só a sensação de vazio, do tecido esburacado, como também a dos preciosos momentos cheios, por vezes nascidos de coisas que estávamos fartos de ver e ouvir. Muitas coisas insignificantes se tornaram preciosas.”
Um ano sem precedentes?
Outro factor que contribui para uma desaceleração do tempo é experimentar coisas pela primeira vez — seja a visitar um sítio novo ou a fazer uma actividade diferente. Com a pandemia, tal não pôde acontecer com tanta frequência. Por outro lado, muitos acontecimentos imprevisíveis decorreram num só ano — ainda que nem tudo fosse surpresa. “O grande choque foi ao início”, acredita o investigador Felix Ringel. “Dizer que isto é uma coisa sem precedentes é uma perspectiva muito europeia, outras partes do mundo já lidaram com estas coisas”, reconhece. A filósofa Maria Filomena Molder tem uma visão semelhante: “Faz falta comparar, a nossa civilização é muito autocentrada, estamos demasiado protegidos de tudo quanto desde sempre compôs o rol dos perigos e ameaças. Uma mistura indecifrável de acaso e necessidades governa a nossa vida desde que nascemos. Convém não esquecer.” Quanto às lições que podemos tirar desta pandemia, a filósofa refere que “as lições costumam ser de moral e têm má fama”.
Não é a primeira vez que estamos perante uma pandemia, não deverá ser a última, e há ensinamentos que nos deverão guiar nesses trémulos passos futuros. “Esta geração vai ficar marcada como a geração da minha avó ficou marcada pela gripe espanhola”, recorda Lídia Jorge. “Lembro-me perfeitamente de ela me contar as pessoas que tinham morrido, inclusive da nossa família e vizinhos, e ela tinha sempre a ideia das privações por que tinham passado, do horror e do que era a morte das pessoas jovens nessa altura.”
Para a escritora, “isto que está a acontecer está a fazer estremecer a relação de cada pessoa com o tempo de uma forma muito intensa”.
“No princípio, perguntavam-me o que é que eu achava que ia acontecer, e eu sempre disse: depende da dimensão da pandemia. Se for muito rápida, não nos mudará. Se for prolongada, vai ter de mudar”, acrescenta Lídia Jorge. A pandemia surge aqui como um travão nas nossas vidas aceleradas. “Eu senti uma outra dimensão do tempo, mas não na natureza de rápido ou devagar: na intensidade de conhecimento. Como se estivesse a receber uma imensa lição. A ideia que tenho é que se abriu uma espécie de janela do mundo e estou a ver o mundo de forma completamente diferente”, diz a escritora, em conversa com o P2.
Os ponteiros da idade
A idade também afecta o nosso tempo sensorial. O que a ciência nos diz é que o tempo parece passar mais rapidamente à medida que envelhecemos. Rovelli não tem dúvidas: “Basta pensar nos longos verões quando éramos crianças. Aqueles dias que nunca acabavam. E o futuro que era uma imensidade tão distante? E depois a vida fica rápida e mais rápida, e mais perto do final parece que voou num minuto...”
Interiorizamos o tempo com base naquilo que temos disponível para comparação: o tempo vivido. Para uma criança de cinco anos, um ano corresponde a 20% da sua vida. Para uma pessoa com 50 anos, um ano é um quinquagésimo da sua vida. Como referido neste projecto visual, “esperar 24 dias pelo Natal aos cinco anos equivale a esperar um ano aos 76 anos”.
A pandemia parece ter trocado as voltas aos relógios dos mais novos e dos mais velhos. Na ânsia de regressar à escola e de estar com os amigos, as crianças e adolescentes podem sentir esta desaceleração do tempo que, para elas, já tenderia a passar mais devagar, independentemente das restrições impostas para combater o vírus que causa a covid-19. Assim, parece que o confinamento e as restrições nunca mais acabam.
“A paciência e o tempo de um jovem não é o tempo de uma pessoa da minha idade”, explica Lídia Jorge, de 74 anos. “Para nós, o tempo passa muito mais rápido, temos outra complacência perante o correr do tempo. Para um jovem, dizer que isto só vai melhorar no Verão é uma catástrofe. Três ou quatro meses na vida deles ocupa um tempo enorme”, observa a escritora. Ainda que, no geral, a idade faça com que o tempo pareça passar de forma mais célere, é também um factor para que o tempo passasse mais devagar durante o confinamento, como referia o estudo da Universidade John Moores de Liverpool.
De qualquer forma, este tempo passado em casa não será em vão para os mais novos. “Isto que lhes está a acontecer é uma lição imensa que é mais importante e terá um alcance muito maior na vida deles do que as matérias que iriam ter nas aulas. Isto é uma espécie de aviso para uma geração”, continua Lídia Jorge. “Irão ficar marcados pelo sentimento de que a vida inclui a doença, a surpresa, o perigo e a morte.”
Uma questão de persistência
No início, havia um “sentimento de fatalidade”, “mas acabámos por ser muito bons nesta adaptação, mais do que pensávamos que poderíamos ser”, descreve o antropólogo Felix Ringel. Passada a fase da adaptação, tornou-se um jogo diferente: agora, é um “jogo de resistência” para fazer frente ao tempo. “É uma questão de perseverança: como é que aguentamos isto? Como é que preservamos a saúde mental, as relações sociais, os nossos ritmos? Com este tempo de Inverno, quanto mais tempo durar, mais difícil se torna para as pessoas.”
Não faltam dados e avisos sobre a forma como as restrições se traduzem na deterioração da saúde mental, incluindo a fadiga pandémica. Com o confinamento, a situação agrava-se. Como informava a directora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Carla Nunes, na última reunião de peritos e políticos no Infarmed: no que toca à saúde mental dos portugueses neste segundo grande confinamento, um em cada quatro sentiu-se quase todos os dias ansioso, agitado, em baixo ou triste por causa das medidas em vigor. Em Novembro, este valor era de um em cinco.
A parte mais profunda da nossa existência, acredita Lídia Jorge, “é assegurada pela resistência de cada um e pela resistência de grupo”. É isso que o confinamento nos diz: é preciso ter paciência. Mas ter paciência não significa não questionar o que é feito do nosso tempo — e quem decide sobre ele. Para Ringel, “o tempo nunca é neutro”. Há uma política do tempo, há conflitos de interesse entre quem tem negócios fechados e quem dá aulas ou trabalha em hospitais, por exemplo. Quanto tempo devemos estar fechados? Quanto tempo demorarão os negócios a reabrir? Quanto tempo mais até à desejada “normalidade”?
“A questão que tem de estar no fundo da nossa mente é: quem são os responsáveis pela gestão do nosso tempo?” Podemos adaptar-nos e encontrar formas de fugir à realidade e construir o nosso próprio tempo, mas a decisão nunca será só individual: “Dependemos de comunicações [políticas], dependemos destas pessoas que nos darão um plano para olhar em frente, para gerir as nossas próprias expectativas do futuro. É ardiloso.”
Como refere Maria Filomena Molder, “há revoltas por causa de estarmos fechados em casa, embora podendo sair. É bem pior estarmos fechados no hospital”. “A angústia faz-nos dançar, o medo paralisa. Mas eu não sou uma inimiga do medo. Sem ele não há vida animal e humana. Se não nos anestesiar, o medo adverte-nos para perigos e é um princípio insubstituível de defesa”, acrescenta. Lídia Jorge insiste na questão da paciência: “Uma parte, nós fazemos. Outra parte, não fazemos nós. Acontece a todos.”
A escritora nota ainda que “transferimos o culpado — que é a natureza, pura e simplesmente, que não tem culpa nem consciência – para aqueles que estão a ajudar-nos. A nossa raiva vira-se contra as pessoas que estão a procurar ajudar-nos, as organizações, os governos, as instituições. É um ensinamento extraordinário”.
Com a pandemia, o físico Carlo Rovelli viu-se obrigado a mudar os seus hábitos de forma “drástica”: o trabalho fazia-o viajar pelo mundo e, do nada, ficou parado em casa. Deu-lhe tempo para “ler, escrever, pensar” — sentiu que o tempo passou mais devagar, e essa é uma sensação que lhe agrada. “Às vezes penso que sonhei [este último ano]”, descreve a filósofa Maria Filomena Molder. Para si, “a atmosfera tornou-se sonâmbula, se bem que o sonambulismo ataque a nossa vida mesmo sem covid-19”.
Já Lídia Jorge sente que não teve de refazer muitas das suas rotinas. “Sinto-me uma pessoa privilegiada porque estou sempre à espera de ter um tempo de silêncio, de recolhimento, de continuidade de leitura e de escrita.” Brinca ao dizer que se trata de uma visão egoísta, “que naturalmente tem sido abalada por aquilo que está acontecendo”.
Felix Ringel tem 39 anos e é alemão, mas vive no Reino Unido, onde dá aulas na Universidade de Durham, no Norte. Não vê a família “há muito tempo”, foi pai durante o confinamento e a família na Alemanha ainda não conhece o bebé. “Acho que nunca nos esqueceremos disso. Não tomaremos mais os abraços por garantidos.”
Zoom no futuro
Pensar no tempo em torno da pandemia é também pensar no que acontecerá depois. É isso que defende o investigador alemão, que se define como antropólogo do tempo, alguém que estuda as relações humanas com o tempo e o tempo em si — no seu caso, foca-se mais no futuro. Independentemente da forma como tenhamos sentido que o tempo passou, a pandemia deve deixar-nos ensinamentos para o futuro. Felix Ringel problematiza: “Devíamos lembrar-nos disto, do que foi realmente importante. Do que é que sentimos mais falta?”
A pandemia fez com que ficássemos mais agarrados ao presente. Felix Ringel detecta um culpado: “O capitalismo obrigou-nos a fazer o que estamos a fazer agora porque estamos constantemente num estado de crise, que só nos pode fazer reagir. Perdemos a capacidade de olhar em frente.” Temos de reivindicar o futuro próximo a partir do presente, propõe. “Há outras formas de viver no presente sem ser neste modo de reacção à crise.”
O tempo é só uma das esferas que foram alteradas pela pandemia. Olhando para o espaço, passou a haver uma dicotomia entre quem vive em pequenos apartamentos nas cidades e quem vive em sítios mais rurais, com mais espaço — que poderá condicionar, no futuro, aquilo que consideramos ser o sítio ideal para viver. “As cidades eram normalmente os locais com mais vitalidade, onde todas as interacções sociais se davam e, do nada, ficaram vazias. Isto mudou realmente a forma como olhamos para as cidades e houve até quem passasse a preferir propriedades rurais.” Também Molder pensa na importância do espaço que nos foi truncado: “Estamos a sofrer, e muito, com a redução do espaço comunitário. A longo prazo, vamos esquecer, voltar aos antigos hábitos. Talvez celebrar.”
As próprias cidades “já começaram a mudar”, diz Ringel, que também estuda o desenvolvimento urbano em cenários pós-industriais. “Os centros das cidades terão de ser repensados, assim como os transportes públicos, assim como as relações entre o trabalho e a casa”, enumera. “É normal que haja mudanças infra-estruturais nas cidades, e acontecem a longo termo, não é imediato.” A questão laboral tornar-se-á muito relevante: “Algumas pessoas demoram três horas a chegar de casa ao trabalho: faz sentido?”
A percepção de espaço e de tempo também já fora antes alterada: a revolução industrial, por exemplo, permitiu-nos estar num comboio que “acaba por mudar o nosso entendimento de relação entre tempo e espaço”, exemplifica o investigador alemão. “É um fluxo constante e muda a todo instante.” A Internet teve um papel similar, ainda mais acelerado, levou a uma “compressão do espaço e do tempo” — e, durante a pandemia, foi através destas tecnologias que muitas das relações sociais, académicas e laborais puderam ser mantidas.
“Houve esta alteração espantosa: a comunicação à distância. Eu passo dias aqui no Zoom”, repara Lídia Jorge. “Estive num Zoom durante três horas e não me apercebi de que tinha passado três horas diante do computador. Foi muito agradável, mas ao mesmo tempo é mais artificial.”
Teremos também de olhar para o que ficou esquecido no meio da pandemia: das doenças que ficaram por detectar, às desigualdades que se foram agravando e aos problemas a que nem prestámos atenção. “A pandemia ocupa um lugar tão grande, tão grande, que todo o outro tipo de relações humanas desapareceu”, reflecte Lídia Jorge. A pandemia eclipsa a restante informação. “Receamos que o mal que não é vigiado esteja explodindo e que só saibamos depois”, resume a escritora.
Esta é também uma oportunidade de olhar para os trabalhadores essenciais e para os locais mais afectados por este vírus. “Devemos olhar para o que está diante de nós, para os velhos e as crianças. De repente descobriu-se com espanto, e nalguns casos com horror, dadas as condições degradantes, que havia lares. O que, se não for hipocrisia da grande, é seguramente uma grande falta de atenção”, observa Molder.
Em suma, urge melhorar os tempos vindouros a partir da incerteza do presente. “As pessoas têm de pensar agora na crise, mas não parecem pensar no futuro além dos próximos meses. Deviam pensar nos próximos cinco anos, dez anos, para que as comunidades se juntem e para começar de novo este futuro”, propõe Felix Ringel. Ou seja, é preciso questionarmo-nos, para que não fiquem oportunidades perdidas pelo caminho: “Aprendemos as lições certas? Aproveitámos esta oportunidade para repensar aquilo que a vida humana neste planeta deveria ser?”