Barack Obama e Bruce Springsteen: dois “outsiders” e um podcast

O antigo Presidente norte-americano e o músico de Nova Jérsia estrearam na segunda-feira Renegades: Born in the U.S.A., podcast em que falam de racismo e dos Estados Unidos. Está disponível exclusivamente no Spotify.

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Nos primeiros dois episódios, os anfitriões falam do que aprenderam na infância sobre racismo, de George Floyd, de Spike Lee e de música de protesto DR

Uma boa parte do segundo episódio de Renegades: Born in the U.S.A., o novo podcast de Barack ObamaBruce Springsteen, é dedicada ao falecido Clarence Clemons (1942-2011), histórico saxofonista afro-americano que, durante quase 40 anos, fez parte da E Street Band, o grupo que acompanha o “Boss” desde sempre. “Havia um idealismo na nossa parceria, de tal modo que sempre senti que o público olhava para nós e via a América que desejava… A América que queria ver, a América em que queria acreditar”, refere Springsteen. “Nunca escrevi uma canção que contasse uma história maior do que aquela que vivi lado a lado com o Clarence nas mil e uma noites em que tocámos juntos.”

Estreado esta segunda-feira e disponível exclusivamente no Spotify, fruto do contrato entre a plataforma de streaming e a Higher Ground, a produtora fundada em 2018 por Barack e Michelle Obama, Renegades fala extensivamente de racismo e integração, bem como das desigualdades dos Estados Unidos de hoje e de sempre. “À primeira vista, pode parecer que eu e o Bruce não temos muito em comum”, refere Barack no arranque do primeiro episódio, chamado An unlikely friendship (Uma amizade improvável). “Ele é um homem branco de uma cidade pequena em Nova Jérsia. Eu sou um negro mestiço nascido no Havai, com uma infância que me levou numa volta ao mundo. Ele é um ícone do rock. Eu sou advogado e político — não é tão fixe.” Faz boas observações o filho de mãe americana com ascendência europeia e pai queniano. Mas a verdade é que poucos saberão pensar e discutir os Estados Unidos como o primeiro Presidente afro-americano na história do país e o cronista supremo da classe trabalhadora.

“Como é que chegámos até aqui?”, pergunta Obama no primeiríssimo segmento do podcast, depois de criticar o mandato de um “sucessor presidencial diametralmente oposto” ao democrata — Barack não refere o nome de Trump nesta introdução, mas culpa-o pelo clima de divisão e violência agravadas com que o país se confronta neste momento e condena a leviandade com que reagiu a uma pandemia que já matou mais de 500 mil pessoas nos Estados Unidos“Como poderíamos encontrar o nosso caminho de volta para uma história americana mais unificadora?” Esta foi a questão que norteou as conversas com Bruce Springsteen. Entre Julho e Dezembro, na quinta de Springsteen em Nova Jérsia — uma propriedade “com uns cavalos, um monte de cães e mil guitarras”, descreve Obama —, cada um falou do que aprendeu na adolescência sobre racismo e de lições importantes que marcaram o seu percurso profissional. “O que descobrimos foi que ainda partilhamos uma crença fundamental no ideal americano. Não como uma ficção barata ou um acto de nostalgia que ignora todas as formas como ficámos aquém desse ideal, mas como uma bússola para o trabalho árduo que espera todos os cidadãos que querem tornar o mundo um lugar mais justo e livre.”

Memórias de adolescência

Apesar das suas diferenças, os anfitriões dizem que ambos cresceram sentindo-se como outsiders. Obama, que nasceu em Honolulu, refere que não era “facilmente identificável”: “Havia provas visíveis de que não era como o resto das pessoas”, comenta. Springsteen passou a infância em Freehold, que descreve como “uma típica cidade pequena, provinciana, racista dos anos 1950”. “Mas estas eram as pessoas que eu amava. Com todas as suas limitações, todas as suas virtudes, todos os seus sonhos, todos os seus pesadelos.”

Foi sobre Freehold que o músico escreveu My hometown, canção do álbum Born in the U.S.A. (1984). Um tema sobre as memórias de adolescência escrito num momento de aperto e dificuldade, em que começavam a multiplicar-se as fábricas abandonadas e os negócios encerrados no município. “My old man would tousle my hair and say: ‘Son, take a good look around, this is your hometown’”, canta, enquanto toca uma guitarra acústica. “As pessoas acompanham-me sempre nesse verso e eu sinto que sabem que a cidade de que estão a falar não é Freehold. Não é Matawan, não é Marlboro, não é Washington, não é Seattle. É tudo. É a América toda, sabes?” “É uma bela canção”, responde Obama.

A dupla passa pelos motins raciais que aconteceram um pouco por todo o país na década de 1960 antes de Obama aludir à influência afro-americana que moldou a música rock e citar uma cena de Não Dês Bronca (1989), filme de Spike Lee. “Um dos protagonistas chama-se Mookie e trabalha para um tipo italiano que tem uma pizzaria. Um dos filhos do patrão é um rapaz amável, adora a comunidade afro-americana que está a servir naquele bairro. Mas o irmão mais velho é mais cínico e descaradamente racista. Então o Mookie começa a fazer-lhe umas perguntas. ‘Quem é o teu basquetebolista preferido?’ ‘Magic Johnson.’ ‘Quem é o teu actor preferido? Eddie Murphy.’ ‘Quem é a tua estrela rock preferida?’ ‘Prince.’ ‘Então por que é que estás sempre a usar a n-word? Estás sempre a dizer que adoras esses gajos e estás a sempre a usar a n-word.’”

“Sempre achei que essa cena captura de forma tão simples e brilhante esta ideia de que os negros são ‘o outro’”, refere o antigo Presidente. “Eles são rebaixados, sofrem discriminação, são menosprezados... E, ainda assim, a cultura está constantemente a apropriar-se do estilo que vem dos outsiders.”

A questão do tom da pele

Obama, que vai mencionando o impacto e a influência do antigo congressista John Lewis — líder dos direitos cívicos nos Estados Unidos que morreu em Julho de 2020, aos 80 anos —, vira depois as atenções para o desporto, lembrando um comentário racista que ouviu do treinador da equipa de ténis da escola quando tinha 12 anos e referindo que o basquetebol foi um escape na adolescência. “O desporto tornou-se o sítio onde os miúdos negros e brancos podiam encontrar-se de igual para igual”, aponta. Não é que a questão do tom de pele não surgisse, salienta, “mas, no fim de contas, o que interessava era quem sabia jogar”.

No segundo episódio de Renegades — o podcast estreou-se com dois episódios e terá oito no total —, os anfitriões reflectem sobre a morte de George Floyd, citam Get Out (2017) — o filme onde o personagem de Bradley Whitford diz que “teria votado em Obama para um terceiro mandato se pudesse” — e conversam sobre músicas de protesto. Bruce fala de Fight the power, dos Public Enemy, e dos temas mais emblemáticos dos Sex Pistols, Anarchy in the U.K. e God save the queen. Barack menciona — e canta — Maggie’s farm, de Bob Dylan, A change is gonna come, de Sam Cooke, Strange fruit, de Billie Holiday, e Respect, canção de Aretha Franklin que “as pessoas não costumam ver como uma música de protesto”. “R-E-S-P-E-C-T!”, canta o antigo Presidente. “Isso é uma música de protesto, certo? Ela estava a dizer a todos os homens: ‘Vê lá se te endireitas.’”

A lista conclui-se com American skin (41 shots), canção que Springsteen escreveu sobre o assassinato de Amadou Diallo, imigrante guineense sem registo criminal que foi morto a tiro por quatro polícias à paisana em Fevereiro de 1999. “Depois desse incidente,  comecei a pensar: ‘OK, pele… Pele é destino’”, refere o músico. “Que privilégio é poderes esquecer-te que vives num determinado corpo. As pessoas brancas podem dar-se a esse luxo. As pessoas negras não.”

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