Covid-19. Vacina cubana avança para fase final de testes. País quer vacinar turistas
Uma vacina contra a covid-19 desenvolvida em Cuba, chamada Sovereign 2, vai avançar para a última fase de ensaios clínicos em Março. Caso mostre ser segura e eficaz, poderá servir para inocular a população cubana e até mesmo os turistas que pretendam visitar o país.
Uma vacina contra a covid-19 desenvolvida em Cuba irá avançar, em Março, para a fase final de ensaios clínicos. Além de um sinal do progresso científico, esta vacina é também uma esperança para o país que atravessa a pior crise económica desde a queda da União Soviética, no início da década de 90, impulsionada pela pandemia de covid-19 e pelas sanções dos Estados Unidos.
O objectivo do Governo cubano é produzir em massa a vacina contra a covid-19 desenvolvida na ilha assim que esta receber aprovação das autoridades de saúde. Por outro lado, o executivo já revelou ter intenção de inocular os turistas que visitem o país, numa estratégia que muitos afirmam servir para impulsionar o turismo.
Segundo dados da analista Statista, entre Janeiro e Março de 2019 chegaram a território cubano vindos do Canadá (o principal país de origem dos turistas que visitam Cuba) mais de 496 mil viajantes, seguindo-se os Estados Unidos (com mais de 181 mil turistas durante o mesmo período). De Portugal chegaram ao país nos primeiros três meses de 2019 cerca de 7500 turistas.
Porém, a pandemia de covid-19 deixou o turismo internacional em suspenso, com Cuba a receber, em termos gerais, menos turistas vindos dos vários países entre Janeiro e Março de 2020. Durante este período, a ilha acolheu cerca de 403 mil turistas vindos do Canadá, 50 mil dos Estados Unidos e cerca de 4600 de Portugal. Apenas o turismo da Rússia registou um aumento, com Cuba a receber mais de 63 mil turistas russos no primeiro trimestre de 2020 — nos primeiros três meses do ano anterior o país tinha recebido cerca de 47 mil.
A vacinação dos turistas que pretendem visitar o país (com uma vacina criada na ilha) pode ser, assim, um trunfo para relançar a economia do país. Mas não só. Esta pode ser também uma questão de saúde pública e reputação.
A vacina em questão — uma das quatro vacinas contra a covid-19 desenvolvidas no país — chama-se Sovereign 2 (“soberano”, numa tradução livre) e vai avançar para a fase final de ensaios clínicos no próximo mês. Tal como a vacina desenvolvida pela norte-americana Novavax, a Sovereign 2 é desenvolvida apenas com partes do agente causador da doença, baseando-se na criação de uma resposta imunitária contra a proteína da espícula, de modo a impedir a sua ligação às células do hospedeiro. Esta vacina cubana é constituída por três doses, que devem ser administradas com intervalos de duas semanas, e (ao contrário das vacinas desenvolvidas pela Moderna e pela Pfizer) não tem de ser armazenada a temperaturas muito baixas, facilitando o seu transporte e armazenamento.
Ao jornal The New York Times, Vicente Vérez, investigador que lidera a equipa de cientistas que desenvolveram a vacina, disse que a Sovereign 2 “é muito segura” e tem “muito poucos efeitos adversos”, o que permitiu que avançasse para a terceira fase de testes. Nesta fase final, a vacina será testada em cerca de 150 mil pessoas em Cuba e no Irão — que já demonstrou interesse em adquirir a vacina. Segundo o mesmo jornal, o México também está em negociações com Cuba para participar na terceira fase de ensaios clínicos.
Os investigadores não irão publicar os dados sobre a eficácia da vacina cubana contra a covid-19 até que os ensaios clínicos terminem e também ainda não está claro se a vacina fornece protecção contra as novas variantes do SARS-CoV-2.
Embora tenha já manifestado a intenção de permitir aos turistas terem acesso a esta vacina, o Governo cubano ainda não anunciou quaisquer planos específicos para a inoculação de viajantes estrangeiros. No entanto, terá que ter em consideração o período de tempo que demorará até que as três doses da vacina sejam administradas (cerca de um mês e meio) e a imunidade desenvolvida.
Gerardo Guillén, investigador do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia cubano que está envolvido na criação de vacinas contra a covid-19, explica ao The New York Times que a solução poderá passar por administrar a primeira dose na ilha e permitir que os turistas levem as restantes duas doses para que estas sejam administradas no seu país de origem.
Pandemia, escassez de bens e sanções
Actualmente, Cuba enfrenta um cenário preocupante: escassez de pão e de bens essenciais em todo o país. Os medicamentos estão em falta nas farmácias cubanas e em Havana, capital e a maior cidade de Cuba, as pessoas têm que esperar até quatro horas na fila para comprar detergente, relata o diário norte-americano.
O novo coronavírus também não deu tréguas. Em 2020, Cuba conseguiu travar com sucesso a propagação do vírus através de fortes restrições à população e de um serviço de saúde eficiente. Qualquer pessoa diagnosticada com infecção pelo SARS-CoV-2 era imediatamente hospitalizada e medicada e os seus contactos próximos isolados e monitorizados. Em 2020, o país de 11 milhões de habitantes registou apenas 12.225 casos confirmados de infecção e 146 mortes por covid-19.
Contudo, o número de casos começou a subir depois da retoma dos voos internacionais, em Novembro de 2020, após uma suspensão de sete meses. Cuba enfrenta agora a pior fase desde o início da pandemia de covid-19, tendo já registado um número mais elevado de casos só em Janeiro de 2021 do que em todo o ano passado. Em Havana, o Governo implementou também o recolher obrigatório a partir das 21h para travar a covid-19.
À lista junta-se o reforço das sanções por parte da Administração Trump contra Cuba, que dificultaram a produção de uma vacina contra a covid-19. Os cientistas afirmam que não conseguem adquirir todo o material e matérias-primas de que necessitam, incluindo espectrómetros — instrumentos usados para o controlo de qualidade.
O Governo, por sua vez, garante ter capacidade para produzir 100 milhões de doses da vacina ainda este ano — o que seria suficiente para inocular toda a população cubana e possivelmente turistas estrangeiros. Mas a falta de materiais e as sanções dos Estados Unidos poderão impedir que o país atinja esta meta.
Relançar a economia, o turismo e marcar uma posição
Ainda assim, o Governo cubano mantém-se optimista e acredita que a eventual aprovação e produção em massa da vacina contra a covid-19 será uma conquista científica extraordinária, abrindo caminho à inoculação da população e à exportação da vacina até ao final do ano.
Caso a vacina prove ser segura e eficaz, esta será também uma vitória política e uma oportunidade única para o Governo cubano marcar uma posição e relançar a economia do país socialista que conta com um sofisticado sistema de saúde e sector biotecnológico — fruto de um investimento, na década de 80, por parte de Fidel Castro, que queria tornar o país auto-suficiente após um bloqueio dos Estados Unidos que dificultou o acesso de Cuba a medicamentos produzidos no estrangeiro.
“Não se trata apenas de medicina e humanitarismo. Haverá uma grande recompensa económica se conseguirem controlar o vírus”, nota Richard Feinberg, especialista da Universidade da Califórnia em San Diego, destacando que a produção da vacina contra a covid-19 poderá também impulsionar “a reputação do sector da biotecnologia farmacêutica em Cuba, permitindo depois [ao país] comercializar outros produtos médicos”.
Os cientistas cubanos referem, por sua vez, que a saúde pública é a “principal prioridade” e que Cuba poderá doar algumas doses da vacina às nações mais pobres, uma vez que o país sempre se mostrou disponível para fortalecer as suas relações internacionais através da doação de medicamentos, exportação de vacinas ou envio de médicos para o exterior. Segundo o The New York Times, em 2019, o envio de médicos, enfermeiros e técnicos para o exterior rendeu 5,4 mil milhões de dólares (cerca de 4,45 mil milhões de euros) ao país — o dobro do que rendeu o turismo.
E pudesse alguém pensar que os medicamentos são desenvolvidos em Cuba e administrados às pessoas sem qualquer controlo, os especialistas garantem que a comunidade científica do país se rege pelos mesmos “elevados padrões” que todos os outros envolvidos no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19.