Por uma estratégia clara de combate à violência (no namoro)
A violência no namoro é bastante grave e, apesar dos dados, é necessário ainda muito trabalho de prevenção. Mas engana-se quem acha que é a exagerar os números que vamos conseguir mudar seja o que for.
Sabia que vários estudos realizados em Portugal nos últimos dez anos, publicados em revistas científicas internacionais, demonstram, de forma consistente, que entre 70% a 80% dos adolescentes mantêm relações de namoro saudáveis? Ou seja, que ao contrário do que muitas vezes é transmitido, a maioria dos adolescentes portugueses não legitima a violência no namoro? Sabia que os estudos realizados em Portugal têm conseguido identificar quais as características e perfis psicológicos dos adolescentes (rapazes e raparigas) que possuem maior probabilidade de vir a praticar violência nas suas relações de namoro? Sabia que, com bases nesses resultados, algumas escolas estão já a trabalhar com estes adolescentes no sentido de desencadear, atempadamente, mudanças nos seus comportamentos? Sabia que a violência psicológica é a mais praticada e que, por esse motivo, requer estratégias de intervenção específicas? Sabia que as atividades de sensibilização sobre a violência serão pouco úteis se não forem acompanhadas de intervenções técnicas específicas, em especial da área da psicologia? Sabia que em Portugal existe já um número significativo de programas de prevenção da violência interpessoal a serem implementados em escolas? Sabia que alguns desses programas foram sujeitos a avaliação científica de resultados e que têm demonstrado eficácia?
Provavelmente não sabia, porque talvez não trabalhe na área ou porque não é um assunto de que se fale muito. Mas será já de enorme gravidade as entidades públicas que gerem o combate à violência de género virem a público assumir dados estatísticos irrealistas, os quais tinham obrigação de conhecer em pormenor. Há uns dias, na sequência de um inquérito da UMAR sobre a violência no namoro no contexto português, fomos surpreendidos com resultados anormais. Era descrito na imprensa que “67% dos jovens consideram legítima a violência no namoro” ou “sete em cada dez adolescentes legitima a violência no namoro”.
Trabalho com avaliação e intervenção psicológica em comportamentos violentos há vários anos, tendo recolhido, juntamente com a minha equipa, dados muito detalhados sobre este assunto e sobre várias tipologias de violência (em especial sobre características dos agressores). Sei por isso que, se aqueles dados fossem verdadeiros, faziam de Portugal um case study mundial. Se fossem verdadeiros, mostrariam os adolescentes portugueses como sendo ignorantes sobre o tópico da violência no namoro, contrariando o que vamos encontrando no terreno, apesar de se verificarem vários problemas. Se fossem verdadeiros, punham em causa todo o trabalho que imensos profissionais vão realizando neste domínio há anos, em especial psicólogos/as nas escolas e em projetos comunitários. Se fossem verdadeiros, punham em causa o imenso trabalho no terreno que muitas associações (por exemplo a APAV e até a própria UMAR), entidades (por exemplo a CIG) ou municípios têm feito nas últimas décadas. Se fossem verdadeiros, dariam razão a políticos irresponsáveis que consideram inúteis as aulas de cidadania e desenvolvimento. Principalmente, se fossem verdadeiros, contrariavam os dados das investigações que vamos obtendo no terreno, trabalhos com objetivos diferentes e, por isso, com mais detalhe e controlo que este inquérito, parece-me.
Esta perplexidade levou-me a procurar ler o original do relatório mais recente do inquérito da UMAR. O que lá diz sobre legitimação, e já de si é grave, é que “…a legitimação média das várias formas de violência, por região geográfica, situa-se entre os 10% (em Viseu) e os 27% (em Faro)”. Sobre a vitimação refere que “… em média, a percentagem de jovens que indicam já terem vivenciado situações violentas situa-se entre os 6% (Bragança) e os 16% (Açores, Aveiro e Setúbal)”. Esta discrepância entre os dados verificados e transmitidos pela imprensa levou a UMAR a assumir que as reflexões “sobre a importância deste estudo vieram confirmar a necessidade de apresentar os resultados de forma cuidadosa”. Trata-se de uma postura correta e que só reforça o papel central que a UMAR irá ter sempre nesta matéria.
Mas creio que, neste momento, é fundamental ser realizada uma reflexão séria sobre toda a estratégia de prevenção que está a ser assumida por parte das entidades públicas nesta área. Há conhecimento do que está a ser feito neste domínio, com sucesso, por parte de dezenas de profissionais? Quais os objetivos, concretos, que o governo pretende atingir neste domínio? Há conhecimento dos programas cuja eficácia foi testada? Uma vez que demonstrem eficácia, não deviam ser alvo de apoio oficial na sua disseminação? Há interesse nessa disseminação? Há conhecimento de dados estatísticos rigorosos para poderem ser tomadas decisões? Sobre esta última questão, recordo que, há poucos dias, como um dos motivos justificantes da realização de formações a 16.000 funcionários públicos, surgia o facto de “dois em cada três jovens consideram naturais comportamentos que configuram violência no namoro”. Dados que não são corretos. Por muito úteis que estas ações formativas sejam, todos concordamos que devem ser alicerçados em dados estatisticamente rigorosos.
A violência no namoro é bastante grave e, apesar dos dados, é necessário ainda muito trabalho de prevenção. Seguramente que os órgãos de comunicação social desempenham um papel de enorme relevância na informação e esclarecimento dos cidadãos. Mas engana-se quem acha que é a exagerar os números que vamos conseguir mudar seja o que for. Na verdade, esta estratégia sensacionalista dificulta o processo de intervenção no âmbito da violência entre os jovens, ao sugerir que 1) a violência está normalizada desta forma (o que não é verdade), ao sugerir que 2) tudo piora a cada ano e que os profissionais (de várias áreas, psicologia, medicina, serviço social, professores) nunca fizeram nada sobre isto (o que não é verdade), que 3) as entidades ligadas a este assunto apenas desperdiçam dinheiro, uma vez que não se vêm resultados ao longo dos anos com as intervenções preventivas (o que não é verdade), que 4) a maioria dos pais (seriam também 67%?), apesar de cada vez mais esclarecidos sobre o assunto, não transmitem aos adolescentes conhecimentos e valores (o que não parece ser verdade). Principalmente, passa a imagem de que 5) os adolescentes são cada vez mais estúpidos e ignorantes. E, apesar dos múltiplos problemas que ainda se verificam, a esmagadora maioria dos adolescentes portugueses não são ignorantes em relação a este assunto da violência no namoro. Torna-se assim evidente a necessidade de rever em Portugal o modelo e a estratégia de combate à violência interpessoal entre os jovens, assegurando uma organização clara das intervenções a curto, médio e longo prazo. Urge, de uma vez por todas, profissionalizar as ações de prevenção e implementar intervenções rigorosas e eficazes. Urge, de uma vez por todas, trazer a ciência para a prevenção de comportamentos de violência interpessoal.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico