“O mais importante é ter vacinas que funcionem contra todas as variantes”

Cientista portuguesa na África do Sul tem estudado a covid-19 no maior hospital de África. Na unidade em que trabalha são desenvolvidos testes das vacinas contra a doença e Marta Nunes explica-nos o que está em questão.

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Marta Nunes DR

Marta Nunes tem estado a liderar alguns estudos sobre a covid-19 realizados no Hospital Chris Hani Baragwanath, na África do Sul. Neste que é o maior hospital de África investiga os factores de risco de doentes que ali chegam ou o impacto da doença em grávidas. Na sua unidade também se fez o estudo à vacina da AstraZeneca-Oxford que levou à suspensão temporária dessa vacina no país. Por isso, a cientista portuguesa explica-nos o que está aqui em questão. E deixa um alerta: “Temos de usar máscara e lavar as mãos, mas se queremos que a população fique imune, as vacinas são a única ferramenta que temos para lutar contra o vírus.” Em conversa com o PÚBLICO, disse que já recebeu uma mensagem que a informou que está na lista de vacinação. “Só não sei ainda com que vacina. O processo de vacinação no país deverá começar esta semana.”

Todos os doentes com covid-19 que entram no Hospital Chris Hani Baragwanath passam a integrar uma base de dados. Assim, a equipa de Marta Nunes tem dados para estudar os factores de risco que levam alguns deles a morrer e outros a recuperar, qual a população mais afectada, quanto tempo duram as hospitalizações ou qual é a mortalidade. Esta investigação começou há quase um ano, quando os primeiros casos foram detectados na África do Sul. “Em muitos destes doentes recolhemos amostras de sangue e estamos a fazer estudos não só de genética como de imunidade”, indica a directora-adjunta da Unidade de Investigação de Análise de Vacinas e Doenças Infecciosas, que faz estudos no hospital, e é também professora na Universidade da Witwatersrand, na África do Sul.

Agora, há uma atenção especial com a variante inicialmente identificada na África do Sul, a 501Y.V2. Uma das perguntas a que tentam responder é se as pessoas já infectadas com outra versão do SARS-CoV-2 são reinfectadas com a variante do vírus. O que já se viu? “Parece que pessoas que foram infectadas com o vírus original podem ser reinfectadas com esta nova variante da África do Sul”, responde Marta Nunes.

Por agora, os “dados mais convincentes” que se tem sobre isso vêm de um estudo clínico na unidade relacionado com a vacina da Novavax. Nesse estudo, viu-se que um terço dos participantes já teria anticorpos do vírus de uma infecção da primeira vaga, mas foram depois infectados com a nova variante. Mas é preciso investigar mais e, para se provar a reinfecção, é necessário sequenciar o genoma associado à primeira e à segunda infecção. Quer ainda ver-se se a taxa de reinfecção é menor do que a das infecções primárias ou qual poderá ser grau de gravidade de uma segunda infecção.

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Marta Nunes é directora-adjunta da Unidade de Investigação de Análise de Vacinas e Doenças Infecciosas, na África do Sul DR

Marta Nunes está também a estudar se as grávidas têm maior susceptibilidade à covid-19. Porquê? Porque noutras infecções virais parece haver uma maior susceptibilidade das grávidas a uma doença grave. Neste estudo quer perceber se as grávidas infectadas com covid-19 têm maior probabilidade de ter bebés prematuros, se vão ter um maior risco de aborto ou se o bebé vai ser tão saudável.

“Ainda estamos a analisar os resultados, mas parece que estamos a ver uma taxa de transmissão da mamã para o bebé relativamente maior do que foi descrito noutros países”, indica, acrescentando que tal se poderá dever a susceptibilidades diferentes em África ou à biologia do vírus e do hospedeiro. Também se quer perceber qual o impacto de uma reinfecção na gravidez.

Por fim, a investigadora portuguesa está a estudar a taxa de infecção em profissionais de saúde e já verificou que é superior à de outros países. Através de testes de PCR, detectou-se que 35% dos 400 participantes desse estudo estavam infectados. Já nos estudos serológicos foram 42%, incluindo 62% dos profissionais de medicina interna. “Estudos na Europa e nos EUA descreveram uma taxa de infecção máxima de aproximadamente 20%”, compara a também professora da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Esse aumento em África pode justificar-se pela escassez de equipamentos de protecção individuais e da formação de como os usar ou de enfermarias que não estão correctamente preparadas para um vírus que se transmite por aerossóis.

Também neste estudo se quer estudar melhor a reinfecção. “Queremos ver se há um nível de anticorpos que evita a reinfecção ou não.” A cientista nota que pode não haver uma protecção total da primeira infecção, mas existir “alguma protecção”.

Os testes às vacinas

Na mesma unidade em que Marta Nunes realiza estas investigações, uma outra equipa testa vacinas. No estudo à vacina da Novavax, apesar de esta vacina ter uma menor protecção para a variante da África do Sul, viu-se que houve uma protecção de cerca de 60% (incluindo a variante). Também foi aqui que se realizou o estudo à vacina da AstraZeneca-Oxford que levou à sua suspensão temporária no país. Esta investigação envolveu cerca de 2000 participantes relativamente jovens, saudáveis e que não estavam em risco de doença grave. Observou-se então que esta vacina proporcionava uma protecção reduzida (de 22%) a doença ligeira a moderada associada à variante da África do Sul.

Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o seu uso em todas as pessoas com mais de 18 anos. O grupo de especialistas da OMS frisava que esse estudo não permitiu avaliar de forma específica a eficácia da vacina contra formas graves de covid-19. Além de ter sido um estudo de pequena dimensão, ainda não foi submetido a revisão pelos pares.

Por isso, Marta Nunes deixa logo uma ressalva: “A vacina funcionou perfeitamente contra o vírus original e contra a variante encontrada em Inglaterra.” E, em relação à variante da África do Sul, apenas põe a hipótese de que possa proteger contra a doença grave. “Se calhar, a vacina vai proteger contra a doença severa [em casos associados à variante] e é isso que se quer proteger.”

Mas porque terá sido menos eficaz contra a variante da África do Sul? “Não sabemos bem”, responde Marta Nunes. A cientista apenas adianta que esta variante tem mutações de interesse na proteína da espícula que podem ajudar o vírus a escapar à resposta de anticorpos no hospedeiro, como a mutação E484K. “Todas as vacinas que até agora foram testadas usam como princípio a resposta imunitária contra essa proteína”, esclarece.

Tendo em conta estes resultados, o Governo da África do Sul, que tinha comprado esta vacina, decidiu suspendê-la temporariamente no país. Uma das propostas (mais ou menos consensual entre os especialistas) é dar esta vacina apenas a uma parte da população antes de a distribuir de forma alargada. Depois, avalia-se se há uma redução da doença grave ou das hospitalizações.

Esta segunda-feira abriu-se também outro caminho para a vacinação na África do Sul: o regulador de medicamentos do país disse ter aprovado um estudo para implementar a vacina da Johnson & Johnson em profissionais de saúde. Marta Nunes conta que esta vacina já tinha sido testada no país num estudo com 6000 pessoas de uma população mais velha e que se tinha olhado para a doença grave. Aí, viu-se que a vacina protegia contra a doença severa, mesmo com a variante. Como a tecnologia da Johnson & Johnson é semelhante à da AstraZeneca, pode significar que esta última também funciona em doença grave com a variante, considera a investigadora.

Uma outra proposta era usar as duas vacinas: uma na primeira dose e a outra na segunda. Levantou-se ainda a hipótese de se trocar a da AstraZeneca com outras de outros países. “Não é nada descabido que essa vacina não funcione na minha população e outro país nos dê uma vacina que funcione aqui”, reflecte. No geral, Marta Nunes diz que é uma boa ideia usar as vacinas da Johnson & Johnson, mas que não se pode deitar fora as da AstraZeneca. “Se não houver esta parceria com outros países para trocar vacinas, acho que se deveria vacinar as pessoas com as da AstraZeneca e fazer estudos para ver qual o impacto na doença severa.”

A lição dada pela variante

Na África do Sul, estas questões ganharam outra dimensão devido à variante identificada no país – em Portugal já foram identificados pelo menos dois casos associados a esta linhagem. Marta Nunes recorda que as suspeitas sobre esta variante começaram no final do ano passado quando se registou um aumento de casos de covid-19 numa população relativamente jovem. Sobre se causa uma doença mais grave, refere que “ainda não há dados concretos sobre isso, mas parece que não causa”. Contudo, destaca que como houve mais pessoas infectadas, os hospitais ficaram mais cheios. Foi esse o cenário em Dezembro no país. “Em Dezembro, quando é Verão no hemisfério Sul, as praias fecharam”, recorda. Houve um confinamento mais apertado e foi proibida a venda de álcool. “Esta variante veio alertar os profissionais de saúde pública para tomarem medidas mais severas. Foi um grande alerta!”

E, mais do que um alerta, foi uma lição: “Temos de continuar a ser responsáveis, a usar máscara e a lavar as mãos mesmo quando o número de casos baixa. Não podemos baixar a guarda! Essa é uma das lições na África do Sul: estávamos na primeira vaga e pensámos que a seguir ia ser tudo mais calmo, mas esta variante obrigou-nos a mudar os nossos comportamentos.”

Quanto ao que é mais urgente agora, Marta Nunes não hesita: “Uma das coisas mais importantes é ter vacinas que funcionem contra todas as variantes. A cientista constata que terão de ser reformuladas para lidar com as novas variantes (e as próprias farmacêuticas têm vindo a anunciar que o estão a fazer), tal como se tem feito com as vacinas da gripe. “Se queremos que a população fique imune, as vacinas são a única ferramenta que temos para lutar contra o vírus.”

Por isso, para si, é também urgente transmitir às pessoas que as vacinas são seguras. “Há informação a passar que diz que foram feitas à pressa. Mas, se foram feitas em tempo recorde, isso aconteceu porque os processos, em vez de serem longitudinais, foram em paralelo: quando se estavam a desenvolver novas candidatas [a vacinas] já se falava também com as autoridades de ética e de aprovação.” Propõe então que se faça “guerra contra a informação que não é verdadeira”.

Por esta altura, Marta Nunes confessa que está cansada. Os estudos de vigilância no hospital começaram em Março e desde então não tem parado. “No ano passado trabalhávamos sete dias por semana”, relata a investigadora já vive há 12 anos na África do Sul. Mas, ao mesmo tempo que revela estar cansada, assume que é um trabalho “muito interessante”. “Para quem estuda vacinas e doenças infecto-contagiosas, é ter o mundo como laboratório.”

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