As certezas absolutas do país “deplorável”
Houve, é certo, erros lamentáveis ou comportamentos deploráveis, mas todos os dias temos dados estatísticos sobre vacinas ou exemplos exaltantes de médicos, professores ou simples cidadãos a provar que o caos num país “deplorável” é uma ficção.
Um vídeo nas redes sociais mostra-nos um homem filmando-se num passeio à beira-mar. Ao lado, agentes policiais que o interpelaram por andar sem máscara de protecção. O homem usa o vídeo para desafiar os agentes, invocando a sua pretensa superioridade na interpretação da lei (dizia estar a cumprir o distanciamento), inferiorizando a sua condição por serem pagos com os seus impostos, recusando de forma ostensiva a sua autoridade, servindo-se do vídeo como instrumento de denúncia de um suposto abuso. Em circunstâncias normais, a atitude desse homem mereceria uma condenação sem reservas. Nos dias que correm, porém, não faltou quem apoiasse a sua insolência perante a autoridade.
Vivemos dias perigosos, em que está não apenas em jogo a eficácia no combate à pandemia, como o modelo de relação social de uns com os outros e de todos com a lei. A impaciência, o sofrimento, as agruras das crises sempre foram oportunidades para rupturas. O descontrolo da pandemia (que, felizmente, parece ter os dias contados), os casos das vacinas tomadas abusivamente, as falhas e a propaganda do Governo, os oportunismos da oposição, os exageros da imprensa e, principalmente, o cansaço começam a contaminar a confiança, a promover o niilismo e a instigar comportamentos extremos.
Num oportuno artigo de opinião no PÚBLICO, o sociólogo Jorge Caleiras analisava este fenómeno e concluía que em causa estava “um dano insidioso que no limite contribui para corroer por dentro, sorrateiramente, a própria democracia”. Num terreno fértil para a demagogia, a manipulação e a descrença, o “tudo está mal” é tão perigoso como o “tudo está sob controlo”.
A confiança conquista-se pela capacidade de resposta dos poderes públicos e pela transparência. O Governo, a oposição, os cientistas ou os jornalistas têm aqui uma enorme responsabilidade. Mas a procura dos factos exige-se também aos que proclamam que em Portugal nada se aproveita, que a vacinação é um desastre, que as autoridades de saúde são incompetentes, que os jornalistas estão todos vendidos, que a pandemia e coisa fácil de travar ou que, de forma genérica, o país é uma choldra governada por políticos corruptos. Houve, é certo, erros lamentáveis ou comportamentos deploráveis, mas todos os dias temos dados estatísticos sobre vacinas ou exemplos exaltantes de médicos, professores ou simples cidadãos a provar que o caos num país “deplorável” é uma ficção.
Numa situação como esta seria impossível que tudo corresse bem, que não houvesse lugar a erros. Transformá-los num registo criminal dos políticos ou num certificado de incompetência dos portugueses pode satisfazer o ego dos pessimistas sabichões – mas dá uma imagem distorcida do país e mina a confiança que tanta falta faz para sairmos deste beco.