Monumento a Aristides em Alfama ainda não é assunto encerrado
Câmara de Lisboa aprovou criação de homenagem ao cônsul no sítio onde era para ter sido o Museu Judaico, mas há propostas para que seja na Tapada das Necessidades, na zona portuária ou no Rato.
Que em Lisboa deve ser criado um monumento de homenagem ao cônsul Aristides de Sousa Mendes é já uma ideia relativamente consensual, mas a discussão sobre o local e a forma ainda mal começou. Embora a câmara tenha escolhido (e votado) um quarteirão em Alfama, várias vozes vêm agora questionar a opção e sugerir alternativas.
António Pedro de Sousa Mendes, neto de Aristides, receia pela “visibilidade” do monumento, enquanto o arquitecto Luís Monteiro, que propôs a homenagem no Orçamento Participativo de 2019, afirma que nada une Aristides a Alfama. Por outro lado, a junta de freguesia local e a Associação do Património e População de Alfama (APPA) dizem que no local escolhido pela câmara devia ser construída habitação.
A decisão camarária de homenagear o cônsul português em Bordéus que salvou milhares de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial foi tomada logo a seguir à de construir o Museu Judaico em Pedrouços e não em Alfama, no Largo de São Miguel, como estava inicialmente planeado. “A ideia é fazer uma requalificação integral do espaço público do Largo de São Miguel e instalar ali um memorial ao povo judaico, com particular enfoque no cônsul Aristides de Sousa Mendes”, explicou a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, em meados de Dezembro.
A proposta foi votada em câmara a 23 de Dezembro e prevê “a criação de uma zona verde e um memorial ao povo judaico e a Aristides de Sousa Mendes” no local para onde estava previsto o Museu Judaico. “Nesta zona da cidade existiu desde a época medieval a conhecida Judiaria de Alfama, onde viveu uma das maiores comunidades judaicas portuguesas”, explica a autarquia. No que a Aristides diz directamente respeito, “várias homenagens, nacionais e internacionais, lhe têm sido prestadas, a título póstumo”, mas Lisboa, “cidade onde viria a falecer em 3 de Abril de 1954, ainda não concretizou a expressão do devido reconhecimento e memória para gerações futuras”, justifica o gabinete de Vaz Pinto.
O neto António Pedro, que até recentemente integrou a administração da Fundação Aristides de Sousa Mendes, teme que em Alfama se perca “a universalidade que é central na memória de Aristides”, sublinhando que o avô não salvou apenas a vida a judeus que fugiam ao regime nazi. “Qualquer sítio é interessante, mas podia ter um pouco mais de visibilidade. Em Alfama fica escondido”, afirma.
António Mendes gosta da sugestão dada por Luís Azevedo Monteiro, que apresentou uma proposta de homenagem a Aristides no Orçamento Participativo que reuniu 1953 votos. A sua ideia é que o monumento tenha o formato da assinatura do cônsul, a mesma que garantiu os vistos de entrada em Portugal às cerca de 30 mil pessoas que os pediram. “Isto precisa de um certo espaço para ser visto, se não fica completamente diminuído”, considera António Sousa Mendes. “A assinatura tem uma importância enorme, foi reconhecida como Memória do Mundo pela UNESCO. E não conheço nenhuma assinatura que tenha tomado a forma de um monumento urbano”, afirma.
A câmara não esclareceu se pretende levar adiante a ideia de Luís Monteiro ou se vai escolher outro projecto para o local. “Acho pouco elegante esta atitude da câmara, que tomou uma decisão unilateral sem falar com as pessoas”, opina o arquitecto. Para ele, não existe relação entre Aristides e Alfama que justifique que a homenagem se situe naquele bairro. E sugere outros. “Um dos sítios que é quase óbvio é a zona portuária. Está num estado até pouco qualificado e há sítios interessantes”, diz Luís Monteiro. O Porto de Lisboa foi ponto de partida para muitos que procuraram refugiar-se na América.
A Tapada das Necessidades, ao lado do Ministério dos Negócios Estrangeiros e com “uma zona verde relativamente generosa”, é outra opção que o arquitecto encara com bons olhos. António Sousa Mendes, pelo contrário, encontra-lhe o mesmo problema de falta de visibilidade que vê na solução Alfama. Entretanto, o Fórum Cidadania Lx lançou uma petição para que o monumento seja antes construído no Largo do Rato, no lote para onde está previsto há anos um polémico edifício pejorativamente conhecido como “mono do Rato”. A ideia de ali se fazer um jardim já tinha sido lançada pelo PSD em 2018. Luís Monteiro prefere não se pronunciar sobre essa opção, mas constata que “ali há uma sinagoga”.
E as casas?
A mudança do Museu Judaico para Pedrouços deveu-se à oposição da APPA, que interpôs uma acção judicial contra o projecto por considerar que a sua arquitectura não se adequava ao bairro. A providência cautelar foi rejeitada em primeira instância, mas aceite em recurso e no Supremo Tribunal Administrativo. Os juízes do Tribunal Central Administrativo do Sul acusaram mesmo a câmara de ter violado as regras urbanísticas que ela própria definira para Alfama ao autorizar a demolição dos edifícios que existiam no Largo de São Miguel.
Com esta decisão, a APPA e a câmara põem fim à acção judicial em curso. E, no largo de Alfama, há agora um buraco para resolver. Luís Monteiro comenta que a homenagem a Aristides “não pode decorrer de uma espécie de penso rápido municipal para resolver polémicas urbanísticas pontuais.”
A APPA, por seu turno, não desistiu de que naquele sítio sejam construídas casas e lembra a petição que reuniu 1200 assinaturas com esse objectivo. Na proposta levada a votos por Fernando Medina e Vaz Pinto, os considerandos são extensos e não só falam da importância histórica de Aristides como também das políticas de habitação do município, argumentando-se aí que em breve estarão disponíveis 34 fogos para habitar em Alfama. O PCP tentou que a proposta contemplasse casas, mas a sugestão foi chumbada.
“A junta revê-se numa solução habitacional para ali e também se revê numa homenagem a Aristides”, afirma Miguel Coelho, autarca de Santa Maria Maior, que engloba Alfama. Lembrando que este é “um bairro com tradições de luta contra a ditadura”, o presidente da junta diz que Aristides é “uma figura que muito nos orgulha” e não vê que os dois objectivos sejam incompatíveis. “Agora é um trabalho para urbanistas e arquitectos.”
Miguel Coelho diz que a junta agora está concentrada na resposta à pandemia, mas que um debate público é necessário. “Vamos ter de ter um momento para discutir isto.” A proposta aprovada em câmara promete essa discussão.