A revolta dos pequenos investidores está a conseguir abalar Wall Street
Pequenos investidores amadores uniram-se para, utilizando as armas habitualmente usadas pelos grandes actores do mercado, fazer subir a cotação de empresas como a GameStop, que desde o início do ano viu o seu valor passar a ser 18 vezes maior.
Ao fim de décadas a verem grandes bancos, fundos de investimento e hedge funds dominarem completamente Wall Street, os pequenos investidores amadores parecem finalmente ter encontrado a fórmula para, pelo menos por uma vez, serem eles a sair por cima nas lutas dos mercados financeiros.
O mercado de acções está, nas últimas semanas e principalmente nos últimos dias, a ser abalado por uma revolta de pequenos investidores, que, acertando estratégias em grupos de chat na Internet, estão a provocar valorizações astronómicas em títulos que estavam a ser alvo de apostas negativas por parte de grandes investidores. Pelo meio, alguns hedge funds ficaram à beira da falência, criando um clima de incerteza que fez os principais índices de Wall Street registarem esta quarta-feira a maior descida desde Outubro.
Tudo começou quando Ryan Cohen – o fundador de uma empresa online de produtos para animais, a Chewy, que sempre foi uma favorita dos pequenos investidores – decidiu entrar no capital e na administração da GameStop, uma empresa que se dedica à venda a retalho de produtos relacionados com jogos electrónicos e que tem vindo progressivamente a sofrer com a concorrência da venda de jogos por via digital e das grandes cadeias de comércio online.
As acções da GameStop subiram com esse investimento, mas de imediato ficou a saber-se que alguns hedge funds - conhecidos pela agressividade com que actuam nos mercados - começaram a apostar que este título ia acabar por se afundar. Fizeram-no através de operações de short selling, que consistem em pedir emprestadas as acções a outros investidores, vendê-las imediatamente, na expectativa de mais tarde as comprar a um preço mais baixo, devolvendo-as ao seu dono e tendo como lucro a diferença entre o valor da venda e o da compra. São operações arriscadas, que podem gerar prejuízos avultados, se o valor das acções subir, mas que os grandes fundos estão habituados a controlar em seu favor.
Um grupo de pequenos investidores, a comunicarem entre si em grupos de chat como o Wall Street Bets, da plataforma Reddit, não gostou deste ataque à GameStop e, de forma surpreendentemente eficaz, estes amadores uniram-se para responder. Fizeram-no comprando acções da GameStop, mas principalmente através da aquisição de opções de compra das acções, um tipo de operação também de elevado risco que consiste em pagar a outros investidores para ficar com o direito de, mais tarde, comprar os títulos a um preço pré-determinado. Se o valor da acção entretanto subir, têm um lucro; se descer, têm de assumir o prejuízo.
As acções da GameStop começaram mesmo a subir e o sucesso desta resposta coordenada dos pequenos investidores foi tal que aqueles que venderam as opções de compra tiveram eles próprios de comprar acções da empresa em larga escala para se protegerem de perdas, contribuindo dessa forma para que as cotações subissem ainda mais.
O resultado foi uma escalada poucas vezes vista em Wall Street. As acções da GameStop, que valiam 19 dólares cada uma no início deste ano, atingiram no final desta quarta-feira uma cotação 18 vezes maior, de 348 dólares. Nos últimos dois dias, a subida atingiu níveis impensáveis há uns meses, com o valor de mercado da empresa a aumentar entre terça e quarta-feira mais de dez mil milhões de dólares.
Isto gerou perdas muito avultadas aos hedge funds que tinham apostado na descida das acções e que acabaram mesmo por assumir a derrota, recuando nas suas posições e suportando as perdas. Alguns desses hedge funds, como o Melvin Capital, já tiveram de ser resgatados com novas entradas de capital para não entrarem em falência.
Em contrapartida, os pequenos investidores – que incluem, entre outros, estudantes, donos de restaurantes em dificuldades, agentes imobiliários e antigos corretores a trabalharem para si próprios – conseguiram ganhos muito significativos que estão a gerar um ainda maior interesse entre outros pequenos investidores.
A luta entre grandes e pequenos nos mercados financeiros estendeu-se a outras empresas, em geral também com uma imagem de negócio em decadência que está a ser atacado por hedge funds com técnicas de short selling. As acções da produtora canadiana de telemóveis BlackBerry já subiram 275% desde o início do ano, a cadeia de cinemas norte-americana AMC Entertainment quadruplicou o seu valor esta quarta-feira.
Este controlo de parte dos mercados por parte de pequenos investidores reunidos num grupo de chat e as dificuldades que estão a gerar a alguns dos principais hedge funds a operarem em Wall Street (que de acordo com a firma de análise de mercado Ortex já tiverem perdas de 70 mil milhões de dólares com as suas operações de short selling) está a criar um clima de instabilidade e incerteza nos mercados.
Na quarta-feira à noite, já depois do fecho do mercado, o encerramento temporário do grupo de chat na plataforma Reddit foi o suficiente para alguns pequenos investidores realizarem ordens de venda que podem vir a baixar o valor das acções da GameStop. Na quinta-feira, as acções da empresa no centro do furacão até começaram por subir mas depois caíram, principalmente porque algumas plataformas de negociação de acções usadas pelos pequenos investidores, como a Robinhood começaram a colocar entraves à realização de operações de compra e venda das acções com maior volatilidade.
Ainda assim, outros títulos, como os da American Airlines, que também estava a ser alvo de apostas de hedge funds, registaram subidas acentuadas. As acções da companhia aérea subiam, a meio da sessão desta quinta-feira, mais de 60%
Ninguém sabe muito bem como é que isto pode acabar. Aquilo que se sabe ao certo é que as empresas que têm estado no centro desta luta entre grandes e pequenos, como a GameStop, não valem na realidade aquilo que é agora o seu enorme valor de mercado.
E o nível de especulação que se verifica no meio de tantas operações de short selling e de aquisição de opções de compra está a fazer com que alguns se lembrem daquilo que aconteceu há duas décadas, antes do rebentamento da bolha das dot-com.
Do lado dos reguladores ainda não há uma reacção, principalmente porque não é nada claro que o facto de um grupo de investidores estar publicamente a partilhar as suas estratégias de mercado — e depois a agir de acordo com essas estratégias — possa constituir um comportamento ilegal.