Perseguida, instrumentalizada, livre. Qual o lugar da arte urbana no Porto?
Após anos de censura, a arte urbana do Porto ganhou aceitação por parte da câmara em 2014. O Programa de Arte Urbana impulsionou a criação de murais por toda a parte, mas foi desacelerando com o tempo. Recentemente, o município cedeu novas paredes aos artistas, incluindo a primeira totalmente livre. Eis o estado da arte deste movimento na cidade.
Em tempos considerada “uma autêntica praga”, a arte urbana do Porto foi sistematicamente perseguida, apagada, invisibilizada e criminalizada pelas brigadas anti-graffiti de Rui Rio, cujo executivo chegou a gastar cerca de 150 mil euros num “combate sem tréguas” a esta manifestação artística através da limpeza indiscriminada de paredes e obras. A tomada de posse do independente Rui Moreira, em 2014, veio inverter por completo a política camarária até então praticada e conferiu à arte urbana reconhecimento na promoção e valorização do espaço público que já tinha noutras partes do mundo. A autarquia arregaçou as mangas e começou a procurar espaços que pudessem ser intervencionados pelos artistas e, em parceria com a Porto Lazer, lançou o Programa de Arte Urbana do Porto para transformar a cidade numa galeria a céu aberto.
A iniciativa avançou em várias frentes com um fulgor nunca antes visto. Realizou-se a Street Art Axa, uma grande exposição que transformou os cinco pisos do Edifício AXA, na Avenida dos Aliados. Inaugurou-se a primeira parede livre do Porto, na lateral do parque de estacionamento da Trindade, com obras dos consagrados Hazul Luzah e Mr.Dheo. Abriu-se uma convocatória para intervir em caixas de distribuição de electricidade na Rua das Flores e em cabines telefónicas nos Aliados. Lançou-se um concurso para decorar os 70 metros do muro de sustentação dos jardins do Palácio de Cristal, na Rua da Restauração. Organizou-se, inclusive, um festival de arte urbana, o Push Porto, a cargo da plataforma Circus Network, que permitiu pintar ainda mais paredes.
Convivência pacata e produtiva
“Se antes éramos ignorados, com este executivo passámos a ser valorizados”, reconhece Hazul Luzah, que durante muitos anos pintou no silêncio da noite e chegou a ver o seu trabalho coberto com tinta amarela pelas brigadas anti-graffiti. A entrada deste executivo “deu aos artistas a possibilidade de ter contacto com a Câmara” e coincidiu com “uma altura de crescimento da arte urbana na cidade”, circunstâncias que resultaram no “momento certo para fazer aquele tipo de actividades”. As brigadas de limpeza continuaram a existir, mas começaram a trabalhar de forma mais ponderada e consciente. “É normal que exista uma equipa que, periodicamente, vá verificando se há paredes que precisam de ser limpas”, atira Hazul. “Se se deixar acumular tudo infinitamente, ao fim de dez anos temos a cidade toda riscada.”
A convivência entre os artistas e a autarquia tornou-se pacata e produtiva. Com o crescimento do turismo e a conquista de prémios como Melhor Destino Europeu, a arte urbana passou a fazer parte da identidade e da oferta turística e cultural da cidade. Os artistas e obras que outrora eram ocultados passaram a ser exibidos com orgulho, nomeadamente em passeios pedestres, de bicicleta, e de tuk tuk, organizados pela Câmara e pela Porto Lazer em colaboração com criadores da cidade. Até 2017, replicaram-se várias iniciativas como a pintura de caixas de electricidade, em Cedofeita, pintaram-se fachadas nos bairros de Francos e Carvalhido e organizaram-se diversas visitas guiadas e oficinas de arte urbana da cidade, mas as intervenções foram-se tornando cada vez mais pontuais e o programa entrou em decadência. “Inicialmente, as propostas pareciam andar a um ritmo grande, mas depois houve de facto um abrandamento”, constata Hazul. O artista não consegue explicar a descontinuação da iniciativa, mas afirma que “o processo pode ter sido arrastado devido à reestruturação da Porto Lazer [empresa municipal que é hoje denominada Ágora – Cultura e Desporto]”.
A arte urbana como cartão-de-visita
Bem mais incisiva é a visão de Miguel Januário, artista portuense por trás do ±MaisMenos±, projecto marcadamente interventivo, político e crítico do sistema e da censura. No seu entender, a perspectiva “mais progressista” do executivo de Rui Moreira não foi “inteiramente inocente”. “Serviu para dar um carácter cosmopolita ao seu desenho de cidade e colocar a arte urbana no pacote turístico”, refere. Nesse sentido, a autarquia apoiou-se nas brigadas de limpeza, mais concretamente de equipas da vereação do Ambiente, para “deixar apenas a arte que ficava bem nesse plano”. Em 2018, já o turismo atingia um pico, Miguel Januário foi para o terreno seguir as brigadas camarárias, no âmbito da sua tese de doutoramento sobre “o paradoxo de intervenção e ilegalidade versus comercialização e instrumentalização” da streetart. O que viu foi, exactamente, “uma abordagem de curadoria que, não tendo uma visão maquiavélica [desta arte], limpava os desenhos desagradáveis e criava um livro mais agradável aos olhos”.
Miguel Januário não desvaloriza a relevância da dimensão institucional na criação artística. Foi, aliás, por iniciativa da câmara que coordenou o projecto “Quem és Porto?”, um painel de azulejos comunitário instalado desde 2015 numa fachada da Rua da Madeira, ao pé da Estação de São Bento. “É [um lado] muito importante, mas é preciso ter consciência da forma como ele vai existindo”, alerta. O artista concorda que “pareceu haver uma onda de elevação da arte urbana, mas entretanto esmoreceu”. “A rampa de desenvolvimento e correria está mais plana, daí estar tudo mais tranquilo”, comenta. E, se é coincidência o programa ser reactivado em ano de eleições autárquicas, Miguel Januário é peremptório em afirmar que “a cultura sempre foi uma bandeira, por isso é preciso abaná-la de vez em quando”.
Em Dezembro, a Câmara Municipal do Porto anunciou novidades para o programa, agora com curadoria de Hazul: a reabertura do mural colectivo da Restauração, onde já há novas obras de sete artistas que ali ficam até ao final do ano, a intervenção em duas paredes na Rua da Alegria, por convite directo a um artista local, e na Travessa da Senhora da Luz, na Foz, com rotatividade de propostas, novas intervenções em caixas de electricidade em três novas localizações e a disponibilização de uma parede legal, a primeira que dispensa aprovação prévia de projecto, no Viaduto de Santa Luzia. Desde o início do ano, foram realizadas novas pinturas no Campo 24 de Agosto, na Rua de Vilar e na Rua de Oliveira Monteiro.