O meu país tão estranho…
Este país amado começa a ficar cada vez mais estranho e difícil de compreender para quem aprecia o exercício da racionalidade.
E agora definia a consciência... segundo ele, era o medo da polícia...
isto da consciência é uma questão de educação. Adquire-se como as boas maneiras
Eça de Queirós
17 de Janeiro 2021: primeiro domingo segundo o novo confinamento. Regresso ao passeio higiénico à beira-rio – moro perto e, portanto, estarei conforme às recomendações da DGS. Constato, como nos dias anteriores, que só 1/3 dos passeantes, contempladores da paisagem, adoradores do sol sentados nas escadas do MAAT ou nos bancos do passeio, ciclistas e utilizadores de trotinetes, usam a máscara obrigatória segundo as normas da DGS, reforçadas por intenção fiscalizadora da polícia, recomendada e anunciada nos media e nos outdoors onde se intervalam cartazes com agradecimentos pelo seu uso, com outros acentuando a sua obrigatoriedade. Deparo-me com uma nova moda. Já não a utilização na ponta do queixo libertando nariz e boca do obstáculo à livre circulação do ar, mas no antebraço, à laia de pulseira/braçadeira, enquanto passeando, cavaqueando em grupos ou saudando outros comparsas, pronta para ser rapidamente colocada in su sitio em caso de proximidade eventual de agente da autoridade. E foi este pensamento subversivo, resquício dum passado que vai ficando longe e que me fez recordar o meu amigo e doente de outras histórias e outros tempos, que clamava na sua consulta anual de vigilância duma cirurgia às artérias “a ética dos portugueses é o medo da polícia!”, mais outras críticas aos sucessivos governos por onde íamos passando.
Recordar Eça para definir o spleen (estado de espírito/angústia existencial) da nação é habitual, para desgraça nossa, cidadãos do vigésimo primeiro século da era comum (politicamente incorrecto falar em era cristã). Significará que ou a essência da nação resistiu, ou é enorme a ignorância dos coevos ou, pior ainda, não há melhor crítico. Não interessa. Recordar Eça de Queirós, folheando no labirinto da memória as suas páginas lúcidas, transporta-me ao prazer discreto de manusear os livros, anotar as páginas – esse diálogo silencioso entre o leitor inquieto e o livro amável que obra intitulada Marginalia [1] me fez descobrir –, é um hábito que tende a perder-se na facilidade das buscas busca pela Internet. Novos tempos, outras emoções, neste país amado que começa a ficar cada vez mais estranho e difícil de compreender para quem aprecia o exercício da racionalidade.
A confirmar este desencontro, um facto. Fomos convidados a votar antecipadamente e as razões eram lógicas: evitar aglomeração nas mesas de voto, caldo perfeito à disseminação do vírus. Mas pela Internet verifiquei que Lisboa, concelho populoso, teria apenas uma mesa de voto, o que me fez desistir logo. Hoje comprovei na televisão as longas filas, em Lisboa e noutras cidades, o distanciamento como ficção que só a discrição e o pudor do jornalista escamotearam a aglomeração habitual. Se significa adesão ao voto é excelente, mas na minha mente angustiada não deixo de pensar que alguém, sub-repticiamente, tentou sabotar o exercício e assegurar que o vírus continuará o seu caminho implacável. Caramba! Não teria sido possível organizar mais duas ou três mesas de voto, não era isso lógico e racional, quando o fundamento para o exercício era evitar ajuntamentos, promover votação activa e facilitar a vida ao cidadão?
Sabe, caro leitor, isto tudo faz sofrer qualquer espírito que procure com razoabilidade e lucidez interpretar e compreender a nossa realidade. Como as decisões mais recentes sobre a pandemia. Veja-se o Quadro I, da autoria de José Aires de Sousa [2], a cujo trabalho notável baseado nas estatísticas oficiais nacionais e internacionais recorro para estes artigos.
Quadro I – Realidade europeia até 14/Janeiro/2021
A curva da realidade portuguesa, a branco no gráfico, continua a subir ultrapassando já o Reino-Unido, representado a roxo, e na tabela confirma-se a tendência de agravamento da situação portuguesa, a vermelho, ultrapassando a tendência de crescimento em Espanha.
Obviamente que será hoje fácil criticar a decisão de alívio de restrições no Natal, mas o que veio a acontecer, infelizmente, era expectável, estava escrito nos astros. Permissividade na decisão política com alívio nas restrições durante o período de Natal, muito pior em Portugal onde foram praticamente reduzidas ao mínimo, permitindo e facilitando viagens no país mesmo entre zonas de maior risco, a que se terá associado displicência na conduta dos cidadãos. Inevitável perante a falta de exigência, de rigor e a incoerência do discurso político, escrevi em artigo anterior [3]. Mas o que mais me impressionou e desafiou qualquer racionalidade e lógica foi o atraso da reunião do Infarmed e da decisão de confinamento e a sua justificação: necessidade de novos dados! Mas o SARS-CoV-2 não fez férias do Natal! As reportagens das ambulâncias em fila, esperando à porta das urgências hospitalares, médicos a ter que observar os doentes ainda dentro do veículo, falam por si. A situação não está controlada e mais vale assumi-lo, para tentar resolver o problema. Outros governos foram mais rigorosos e exigentes nas restrições severas e o resultado parece óbvio: estão a controlar a disseminação com maior eficácia.
O Quadro II é elucidativo: Portugal na liderança dos países com maior número de casos por milhão de habitantes e no quarto lugar do número de fatalidades, pior que os States de Trump e o Brasil.
Quadro II – Situação em 15/Janeiro/2021
O discurso oficial sugeriu quebra no contrato de confiança e displicência no cumprimento individual das regras sanitárias, uma forma subtil de denegação da responsabilidade de quem decidiu. Há aqui uma estranha convergência com opinião expressa que invoca a liberdade individual nas sociedades ocidentais em contraponto à maior disciplina social em países como Coreia do Sul, Taiwan, Nova Zelândia, Singapura, como razão para o nosso insucesso no controle na pandemia (certain groups in Western society have made the decision that the vulnerable’s lives matter less than their right to party, to have a beer and a burger, a cocktail and a steak, a laugh at the pub with friends) [4]. E o autor fala em individualismo tóxico, raíz da indiferença colectiva à sorte dos mais vulneráveis, como explicação para a posição das gerações mais novas – grandes transmissores com os seus parties e ajuntamentos – e como justificação para a procura do equilíbrio (tradeoff) entre Economia e Saúde Pública. O autor classifica esta atitude como uma traição à civilização ocidental, ao dever de verdade, justiça, decência e de liberdade que são paradigma da acção civilizada (freedom was a society that was able to act in a civilised way). Mas o risco desta argumentação é poder fazer crer que eventuais modelos mais autoritários, com maior controle de liberdades individuais e maior disciplina social, poderão ser mais eficazes em situações de crise. No seu ensaio Este Vírus Que Nos Enlouquece, Bernard-Henri Levy [5] analisa com grande lucidez este problema.
O que me parece estar em causa é a rotura do contrato social que, nas nossas sociedades, sempre ligou a liberdade individual à realização do Bem Comum pelo dever de tolerância, responsabilidade social e solidariedade, verdadeiramente a marca da sociedade democrática e liberal que proporcionou o maior nível de prosperidade na história da Humanidade. E o que falhou, na minha perspectiva, foi a incoerência do discurso oficial, a duplicidade de critérios, a falta de rigor que tantas vezes sacrificou a realidade dos factos à conveniência da narrativa desejada, o dever de exigência social à satisfação de clientela política e outros compromissos. E é a necessidade de verdade, objectividade e responsabilidade que se impõe nesta segunda fase do combate difícil e exigente contra a Pandemia. Não se compadece com o preconceito ideológico que domina o discurso oficial na Saúde, o qual não só deixou o SNS isolado neste combate como criou uma realidade alternativa que serve de justificação à diabolização da Medicina Privada e ao apelo à requisição civil das suas instituições, ignorando a disponibilização de recursos rapidamente colocados ao serviço dos portugueses, como foi divulgado com clareza meridiana em artigo publicado neste jornal por Óscar Gaspar [6]. Aliás, a discrepância entre a Arte do Bom Governo com o respeito pelas virtudes cívicas de Verdade, Justiça, Rigor e Bondade que Lorenzetti imortalizou em fresco notável já mencionado [7], e a sobranceria que leva a escamotear factos, justificar actuações menos rigorosas, atropelos à Verdade, tudo pela narrativa conveniente ao Poder Político, tem sido demasiado frequente. Lord Owen, médico e psiquiatra, que foi ministro dos Estrangeiros no Reino Unido, designou esta atitude mental de políticos contemporâneos hubris, misto de arrogância, megalomania, desprezo (contempt) pelos factos, num livro que vale bem a pena ser lido e meditado [8].
Todas estas preocupações, que me parecem lógicas e necessárias, estão hoje esquecidas no discurso de muitos candidatos à chefia do Estado, como no próprio debate parlamentar, envolvidos em disputas frívolas, sem outro objectivo que não seja captar a atenção e o soundbite mediáticos. Eça volta a ter actualidade: Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.
E acrescentava nas Cartas de Inglaterra: a nossa pobreza relativa é atribuída a este hábito político e social de depender para tudo do Governo, e de volver constantemente as mãos e os olhos para ele como para uma Providência sempre presente.
De facto, caro leitor, na dimensão sanitária, vemo-nos envolvidos entre a teimosia dum preconceito ideológico, hubris, ignorância da realidade e procura da adesão fácil em detrimento do sacrifício necessário. Soube-se, a posteriori, que na reunião do Infarmed de 12/1/2021 se afirmou desconhecer-se a origem dos contágios em 87% dos casos – porque não se promoveram os recursos humanos para fazer os rastreios epidemiológicos necessários (há umas centenas de rastreadores para uma necessidade estimada de 10.000), mas ignorou-se a sugestão que se mobilizassem estudantes universitários de Medicina, Enfermagem e outros para essa actuação – e assumiu-se que escolas e transportes públicos não representavam risco de contágio. Ignorou-se informação disponível do CDC (Centers for Disease Control and Prevention) norte-americano, que mostrava a incidência elevada nos grupos etários dos 14 aos 17 anos e dos 18 aos 24 anos (mostrado por responsável médico na televisão) [9].
Acabo de ouvir que haverá hoje reunião urgente de Conselho de Ministros, espero que revejam as excepções ao confinamento, nomeadamente para os alunos do secundário e universitários. Isso, mais o risco de não conseguirmos montar uma estratégia eficaz e rápida de vacinação maciça da população portuguesa, são motivo de grande preocupação.
Na dimensão económica e na reconstrução necessária da Economia, prevalece uma visão estatizante perante silêncio ensurdecedor da Oposição sobre alternativas, projectos, ideias que sejam mobilizadores da vontade colectiva. O discurso oscila entre um apelo claro ou subliminar à intervenção do Estado como agente económico fundamental em detrimento dos agentes privados, numa economia débil e em dificuldades graves. Esta perspectiva encontra racionalidade na lógica da coligação, ora formal, ora informal, que recebeu o nome de “geringonça" e que tem sustentado o Executivo e os seus orçamentos nos últimos seis anos. Será esse o caminho? Sabemos aonde nos conduziu no século XX e a memória desse tempo não é assim tão distante.
Miguel Monjardino, num artigo publicado há dois dias no Expresso [10], escrevia com grande lucidez que “as consequências sociais, económicas e financeiras da pandemia terão fortes repercussões políticas. A memória do que garante a nossa segurança transatlântica e liberdade está a desaparecer em Portugal”. Preservar essa memória do que é essencial para construção do Futuro, fomentar as cooperações que permitam a sua intervenção concreta serão, porventura, o maior desafio do Presidente da República, que espero venha a ser eleito sem hesitação na primeira volta. Não há tempo a perder!
Referências
[1] Jackson, H. J. Marginalia: Readers writing in Books, New Haven: Yale University Press, 2001
[2] Aires de Sousa, José: A Matemática do covid-19
[3] Fernandes e Fernandes, José: Dever de Responsabilidade e Obrigação Ética? PÚBLICO, 13/1/2021
[4] Haque, Umair: How the West Got Covid so wrong, in Eudaymonia, 31/10/2020
[5] Levy, Bernard-Henri: Este vírus que nos enlouquece, 2020
[6] Gaspar, Óscar: O polígrafo da Saúde, PÚBLICO, 16/1/2021
[7] Fernandes e Fernandes, José: Do Bom e do Mau Governo, PÚBLICO, 3/10/2020
[8] Owen, David: In Sickness and In Power, Methuen, 2008, revised 2011
[9] Froes, Filipe: Entrevista SIC Notícias, 15/1/2021
[10] Monjardino, Miguel: “Portugal, os EUA e a União Europeia: que relação transatlântica?”, Expresso Revista, 15/1/2021