Hospitais fizeram menos 121 mil cirurgias e 1,2 milhões de consultas. O futuro traz mais preocupação

Número de cirurgias e consultas realizadas entre Janeiro e Novembro do ano passado caiu face ao mesmo período de 2019. Salto exponencial de novos casos de covid-19 e o esperado aumento do número de internamentos estão a colocar os hospitais sob pressão.

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Paulo Pimenta

A próxima semana vai ser decisiva. O salto exponencial de novos casos de covid-19 e o esperado aumento do número de internamentos estão a colocar os hospitais sob pressão. Mas esta é uma história que já carrega um passado que começa a ser pesado para o Serviço Nacional de Saúde e para os doentes não covid. Entre Janeiro e Novembro do ano passado, em comparação com o mesmo período de 2019, fizeram-se menos 121 mil cirurgias e 1,2 milhões de consultas nos hospitais.

E a factura não fica por aqui, ainda que o valor global de consultas realizadas nos cuidados de saúde primários possa enganar à primeira vista por causa do forte crescimento das consultas à distância. É que em presença são menos 7,2 milhões de consultas médicas e 3,4 milhões de actos de enfermagem. São dados do Portal da Transparência que mostram um SNS em profunda desaceleração de actividade na assistência aos doentes não covid e invertendo a tendência de mais acesso conseguida em 2019.

Segundo os dados, até Novembro do ano passado, realizaram-se 530.618 cirurgias no SNS, o número mais baixo de sempre desde que este portal começou a publicar dados da actividade cirúrgica. Bem diferente dos números de Novembro de 2019, com o SNS a registar um número recorde de 652.105 cirurgias urgentes e programadas. Trata-se de uma quebra de 18,6%, cujo efeito maior resulta da suspensão de toda a actividade não urgente que aconteceu entre Março e Abril. Em Fevereiro de 2020, ainda sem casos positivos de covid-19 em Portugal, o SNS tinha realizado 60.246 cirurgias. Dois meses depois, este número baixou para 16.747.

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Desde então, a actividade mensal cirúrgica tem vindo a recuperar, ultrapassando o tecto das 60 mil cirurgias por mês em Outubro. Mas os dados de Novembro dão já sinais dos efeitos que a segunda onda pode ter tido neste indicador. Entre Outubro e Novembro, o número de cirurgias desceu 8%.

Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, acredita que a diminuição será maior nos meses para os quais ainda não há dados disponíveis no Portal do SNS. “Já estamos com perda de actividade”, diz, lembrando a suspensão das cirurgias programadas em vários hospitais. “Antes da pandemia, o rácio de enfermeiros por mil habitantes já era dos mais baixos dos países da OCDE. Se, num contexto de pandemia, precisamos de mais camas de internamento e de mais camas de cuidados intensivos, a única hipótese é parar a actividade cirúrgica programada para utilizar as equipas dos blocos operatórios que, ainda assim, são aquelas que têm alguma experiência em doentes ventilados”, explica.

Nas consultas hospitalares, os números mostram novamente uma tendência de desaceleração em relação a 2019. Entre Janeiro e Novembro de 2020, realizaram-se 10,2 milhões consultas hospitalares, menos 1,2 milhões que no período homólogo. As primeiras consultas registaram uma descida de 16,4% e as subsequentes uma redução de 9%. Foi também Abril o mês em que se registou o valor mais baixo. Desde então, esse valor tem vindo a crescer (excepção de Agosto, um mês habitualmente de férias) até Novembro, que é marcado por uma estagnação.

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Xavier Barreto, da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), explica, “houve um trabalho muito intenso para recuperação de cirurgias e consultas”, com “alguns hospitais a baterem recordes de produção”. Mas a segunda vaga veio trazer novas dificuldades. Não tanto nas consultas - “não sofreu grande impacto, ainda que em Novembro e Dezembro alguns profissionais tenham sido chamados para a linha da frente e haja um crescimento de profissionais infectados e isso leve a uma pequena quebra” -, mas sobretudo nas cirurgias. “Agora estamos a parar em função da necessidade de alocar recursos para o atendimento covid.”

O vogal da direcção da APAH fala de um outro “risco” a que se poderá assistir nos próximos meses. “As listas de espera para [primeiras] consultas estão a desaparecer e é um péssimo sinal. Quer dizer que os cuidados de saúde primários não estão a referenciar e que não está a recuperar a quebra que aconteceu. É muito grave o que está a acontecer nos doentes não covid.” E deixa uma garantia e um alerta: “Os profissionais de saúde estão muito empenhados em recuperar os doentes não covid. Mas esse empenho tem de ser acompanhado pela tutela e materializado em acções concretas. É necessário um investimento massivo no SNS, quer nas pessoas quer nas estruturas e equipamentos.”  

Contrariam tendência com consultas à distância

Já nos centros de saúde, os números podem parecer, à primeira partida, mais animadores com recorde de 28,6 milhões de consultas - mais 3,38% do que em igual período de 2019. Porém, foram as consultas não presenciais que quase duplicaram. Passaram de 8,5 milhões para 16,7 milhões. Um dado que contrasta com as consultas presenciais: 11,8 milhões - uma quebra de 38% face a igual período de 2019.

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Já nos actos de enfermagem não houve atenuantes, ainda que os actos não presenciais tenham crescido 62%. Em 2020 registaram-se 17,2 milhões, menos 13% do que em 2019, quando atingiu o valor mais alto desde que há registo. “Se não estamos a investir na promoção, prevenção e nos rastreios, significa que essas pessoas, quando precisarem de alguma coisa, já vão precisar de tratamento em contexto hospitalar”, lembra a bastonária dos enfermeiros.

O presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN) diz que os actos não presenciais são solução só para alguns casos. O enfermeiro lembra que os cuidados de enfermagem nos cuidados de saúde primários obrigam a um contacto de proximidade que nem sempre se consegue via telefone, até porque “muitos utentes nem consideram esse contacto bem uma consulta”.

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Para Diogo Urjais, o número recorde de casos a que temos assistido nos últimos dias é preocupante. “É impossível tapar tudo com a mesma manta. Os enfermeiros dos cuidados de saúde primários estão a fazer o seguimento dos doentes positivos, dos que estão sob vigilância e estão também alocados a fazer testes”, reforçando que, “sem um reforço de recursos humanos”, “há uma perda na restante actividade assistencial porque as pessoas não conseguem estar em todo o lado”. E a “manta” terá agora mais uma tarefa: vacinar contra a covid.

“A nossa rede de vacinação é muito experiente”, afirma o presidente da USF-AN, mas há aqui novos desafios: uma “vacinação em massa que obriga, ou pode obrigar, a duas doses e que tem uma logística e organização totalmente diferente”. “Como é que queremos vacinar uma grande percentagem de utentes se não reforçamos os cuidados de saúde primários”, questiona. “É matematicamente impossível”, diz Diogo Urjais, temendo que a actividade assistencial aos doentes não covid seja, mais uma vez, afectada.

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