Houve 46 mortes colaterais por cada cem vítimas da covid-19

Especialistas estimam que efeitos indirectos do combate à pandemia expliquem aumento da mortalidade, que está 13% acima do normal segundo o INE.

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Manuel Roberto

Por cada cem mortos causados pela covid-19, morreram em Portugal mais 46 pessoas por motivos que podem ser considerados efeitos indirectos do combate ao vírus, como atrasos nos diagnósticos ou tratamentos. A estimativa é feita por investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), tendo por base os dados da mortalidade do último ano. O número de óbitos registado desde o início da pandemia esteve 13% acima do normal, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).

A análise estatística conduzida pelo investigador da FCUL Carlos Antunes revela que às 6972 vítimas mortais directamente atribuídas ao vírus SARS-CoV-2 até ao final de 2020, juntam-se 3207 mortes devido aos “efeitos indirectos do combate à covid-19”. Por causa da pandemia, parte da população adiou, por sua iniciativa, consultas, e as unidades de saúde suspenderam, em diferentes períodos, actos médicos. Como consequência, foram adiados diagnósticos ou tratamentos, o que terá levado a um aumento da mortalidade.

O modelo matemático usado por Carlos Antunes estima que, por cada cem mortos por covid-19, tenha havido mais 46 pessoas que morreram por outros problemas de saúde e que não tiveram o devido acompanhamento. Grosso modo, é uma vítima mortal a mais por cada dois óbitos devido ao coronavírus. Este é um fenómeno estudado noutras epidemias e, segundo Antunes, no início desta pandemia havia especialistas que estimavam que houvesse uma vítima “colateral” por cada óbito directamente relacionado com a doença. Um balanço, porém, “só pode ser feito” no final, adverte o investigador.

Carlos Antunes tem desenvolvido este trabalho juntamente com o também professor da FCUL Manuel Carmo Gomes. Este epidemiologista aponta ainda a necessidade de levar em consideração nesta análise uma terceira dimensão: o excesso de mortes que aconteceria com ou sem covid-19.

Os investigadores estimam que cerca de 870 mortes em excesso se devam a um fenómeno de aumento da mortalidade que se verifica em Portugal, de ano para ano, desde 1985, e se tornou mais pronunciado a partir do início deste século. Esta é uma “tendência evidente” e que “vinha de trás”, sublinha Carmo Gomes, para quem a situação está relacionada com “o envelhecimento da população”.

População mais idosa

Os dados preliminares relativos à mortalidade em 2020, divulgados esta sexta-feira pelo INE, mostram que a maior parte dos óbitos registados no ano passado ocorreram entre a população mais idosa. Mais de 70% das mortes em excesso foram de pessoas com idades iguais ou superiores a 75 anos. Comparativamente à média do período homólogo de 2015 a 2019, morreram mais 10.886 pessoas com 75 e mais anos – a maior parte delas (8.038) com 85 anos ou mais.

De acordo com o INE, entre 2 de Março, data em que foram diagnosticados os primeiros casos de covid-19 em Portugal, e 27 de Dezembro, registaram-se 99.356 óbitos em território nacional. São mais 12.852 mortes do que a média do mesmo período nos últimos cinco anos – um aumento de 13%.

O aumento do número de infecções pelo vírus SARS-CoV-2 desde o Outono também fez aumentar a proporção das mortes associadas à covid-19. Se, no final do mês de Outubro, a doença explicava menos de um terço dos óbitos em excesso registados desde o início da pandemia, neste momento a covid-19 é responsável por 52% das mortes superiores ao normal (6777).

Segundo os dados que o INE publica nesta sexta-feira, nas últimas quatro semanas, o número de vítimas mortais provocadas pela pandemia foi 15,3% superior à média do período homólogo de 2015 a 2019.

“O acréscimo do número de óbitos é, à medida que nos aproximamos do final do ano, cada vez mais explicado pelo aumento dos óbitos por covid-19”, sublinha o relatório. Nas semanas 48, 51 e 52 (todas no mês de Dezembro), o número de mortes associadas ao vírus SARS-CoV-2 “superou o aumento da mortalidade relativamente às semanas homólogas”. O maior número de mortes de 2020 foi registado na semana de 7 a 13 de Dezembro: 2.992.

O excesso de óbitos “tem vindo a decrescer ao longo dos meses”, aponta um outro estudo, da Escola Nacional de Saúde Pública, também divulgado esta sexta-feira. Em Dezembro, não foi observada “mortalidade colateral”, como os investigadores daquela unidade da Universidade Nova de Lisboa designam o fenómeno.

“Isto poderá dever-se aos esforços do SNS para recuperar os atrasos no atendimento dos utentes não-covid-19”, consideram os investigadores. Acrescentam uma outra explicação: este período do ano tem tido, em anos anteriores, uma alta mortalidade, em parte devida aos surtos de gripe. No mês passado, registou-se “um número extremamente baixo de óbitos”, apenas nove, por gripe sazonal, “o que sugere que alguns desses óbitos possam ter sido matematicamente ‘substituídos’ por covid-19”, apontam.

“Não há dúvida que há um efeito da pandemia” no excesso de mortalidade registado no ano passado, analisa o investigador da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa Paulo Jorge Nogueira. Este especialista recomenda, porém, “cautela” na leitura dos números: “Quando estamos a comparar períodos homólogos, valorizamos o que é novo, neste caso a pandemia. Mas não podemos assumir que tudo o resto permaneceu igual em relação aos anos anteriores”.

Quando, na primeira fase da pandemia, publicou um artigo científico em que analisava o excesso de mortalidade registado em Portugal até Abril, havia apenas dois grandes factores a considerar: a pandemia e o confinamento. Neste momento, “a realidade é mais complicada”, tendo em conta que as medidas tomadas pelo Governo foram menos transversais.

Vaga de frio

Além disso, é necessário ter em consideração o papel que a vaga de calor, em Julho, e a actual vaga de frio têm na mortalidade, defende Paulo Jorge Nogueira, algo que recomendava que a Direcção Geral da Saúde – onde foi director de Serviços de Informação – criasse um grupo de trabalho específico para compreender melhor o fenómeno, defende.

Essa monitorização é feita pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, responde o Ministério da Saúde, no âmbito do sistema de Vigilância Diária da Mortalidade, que acompanha diariamente a mortalidade por todas as causas ocorrida em Portugal desde 2004. “Devido à pandemia”, a tutela “tem solicitado relatórios de períodos mais longos, para ter informação consolidada sobre esta matéria”, garante o gabinete de Marta Temido.

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