O jornalista de bengala
Na imprensa, na rádio e na televisão, o jornalista português acrescentou a “bengala europeia” à longa lista das muletas em que se apoia quando ignora o rigor e cede ao facilitismo.
O provedor transcreve quase na íntegra o reparo do leitor Renato Soeiro a propósito do modo como é noticiada a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia.
“Nestes primeiros dias do ano de 2021, todos os meios de comunicação têm dado grande e justificado destaque à presidência portuguesa que agora começa. Mas há um problema para o qual queria chamar a vossa atenção: os títulos de jornais e rodapés televisivos em que se refere a ‘Presidência portuguesa da União Europeia’ são completamente inadequados e isso tem alguma gravidade que pode passar despercebida. Por duas razões.
A primeira e mais elementar é porque são falsos. Portugal não tem a Presidência da União Europeia porque isso não existe, a União Europeia pura e simplesmente não tem presidência, nem presidente. Portugal tem um Presidente, os Estados Unidos também, a União Europeia não tem. E isso não é um acaso nem um pormenor. Foi uma opção bastante ponderada, muito discutida e, penso eu, bastante sensata.”
O leitor estabelece a seguir uma lista das instituições da UE que têm um presidente, e continua: “ (…) só o Conselho [ou Conselho da UE ou Conselho de Ministros] tem uma presidência rotativa e é essa que cabe agora a Portugal. Presidiremos a uma das sete [ou nove, com os comités consultivos] instituições da UE. (…)”
“Não se pretende com esta nota desvalorizar a presidência portuguesa (…), o papel dos governantes, diplomatas e funcionários portugueses na condução dos trabalhos e reuniões que lhes competirá presidir. Pretende-se, isso sim, alertar para o facto de que todo este tratamento jornalístico da presidência rotativa do Conselho como se fosse a ‘Presidência da UE’ é objectivamente errado, prestando portanto um mau serviço à população porque não a ajuda a compreender o funcionamento institucional da UE, já de si suficientemente complicado e difícil de compreender.”
“Mas, mais grave do que isso, este erro (…) acaba por ajudar aos intentos daqueles que pretendem uma maior governamentalização da UE, (o que representaria) um retrocesso político e institucional face a um movimento contrário que teve vencimento com a aprovação do Tratado de Lisboa. Como se refere no site oficial do Parlamento Europeu: ‘O Tratado de Lisboa (confere) aos deputados ao Parlamento Europeu um maior peso na condução da UE. Todas estas reformas garantem que o seu voto nas eleições europeias influa de forma ainda mais decisiva na escolha do rumo a seguir pela Europa’.”
Remata o leitor: “Sugerir, subliminarmente que seja, que o Conselho de Ministros preside à União é pois, não só uma afronta ao tratado, mas também contrário à recente evolução do projecto europeu no sentido de dar mais peso aos representantes directamente eleitos pelos povos. Os nossos jornalistas deveriam ter isso em conta quando usam a expressão factualmente errónea de ‘Presidência da União Europeia’.”
O leitor suscita aqui uma questão de rigor, talvez levado ao extremo, mas que se enquadra no âmbito mais vasto das bengalas em que os jornalistas gostam de se apoiar. Percebe-se que por uma questão de economia nos títulos a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia seja promovida a Presidência da União Europeia. Mas a economia não deixa de ser uma falta de rigor – que, aliás, também se verifica em alguma outra imprensa europeia.
Esta bengala faz parte de um bengaleiro bem recheado com várias outras muletas. Quase todas reflectem um certo deixa-andar, por detrás do qual desponta uma tendência para o facilitismo ou, pior, a velha máxima popular do “para quem é, bacalhau basta”, aqui aplicada – talvez inconscientemente e por (mau) hábito – pelo jornalista ao cidadão destinatário da notícia. Ora vejamos, a talho de foice.
Nas televisões, o uso das bengalas é ainda mais visível, porque reforçado pela imagem, como não podia deixar de ser. Ficando apenas pela actualidade, repare-se na forma como são ilustradas as notícias sobre a vacina para a covid-19 transmitidas nos telejornais. Temos, ad nauseam, a seringa, o braço nu e a injecção – que mais parecem uma aula iniciática à Enfermagem – ou então o pequeno carrossel de frasquinhos, sendo que uns não excluem o outro, consoante o tempo da notícia.
A escolha destas representações obedece à errada lógica televisiva de que as imagens de ilustração servem apenas para encher o ecrã, ainda que, por vezes, nada tenham a ver com a matéria tratada. É o caso das notícias sobre o PIB, a economia, as exportações ou a produtividade de Portugal, por norma ilustradas com umas simpáticas costureiras a costurar e uns simpáticos sapateiros a fazer sapatos. Se as imagens remetessem para a Idade Média, eram adequadas…
Ainda a talho de foice, ocorre-me que há uma série de verbos que foram banidos dos noticiários das rádios. Já ninguém diz, afirma, indica, aponta, reforça, anuncia ou esclarece. Tais verbos foram proscritos, excomungados pelos jornalistas. Agora toda a gente “revela”, a propósito de tudo e do seu contrário. De acordo com esta prática, teremos em breve o cozinheiro a revelar que cozinha e o Presidente que preside em noticiários apinhados de “revelações”. Também aqui não se trata de uma falta grave contra a ética ou a deontologia jornalísticas. Mas é uma rasteira que se prega ao rigor que deve separar o jornalismo da bagunça triunfante praticada nas chamadas “redes sociais”.
E já que me lancei por este caminho, ladeado de camadas de facilitismo linguístico que se vão sedimentando na prática jornalística, ocorre-me também a moda da tradução literal de algumas palavras do inglês para um português aproximativo: temos assim que já não existem provas, mas sim “evidências”, e que ninguém se suicida, porque “comete suicídio”… E ocorre-me, por fim, aquele poeta que canta a língua portuguesa “ainda bela, ainda nossa, ainda livre”. Ámen, antes que “a suicidem”.
P.S.: Os debates televisivos sobre as presidenciais foram feitos à volta do “caso do dia” – o SEF, o procurador europeu, a ministra da Justiça, o primeiro-ministro que a segura, a redução do número de deputados, o prolongamento do estado de emergência, as posições do Chega (promovido a epicentro da actualidade política e assim outro tanto propagandeado) e quase nada sobre o futuro de Portugal. Tirem aos debates os episódicos “casos do dia” e pouco resta. Pelo meu lado, lamento que ninguém se tenha lembrado de perguntar aos candidatos a Presidente da República onde é que eles querem que Portugal esteja daqui a 20, 30, 50 anos, e tenho ainda maior pena que nenhum deles se tenha dignado falar no assunto.