USA a caminho da tirania
O golpe contra a democracia perpetrado a partir da Casa Branca com a cumplicidade explícita de boa parte da elite política republicana atingirá o ponto culminante nos próximos dias. A Democracia está sob ameaça.
Que um sujeito com exuberantes sintomas de patologia psiquiátrica – provável perturbação narcísica de personalidade com eventual agravante psicopática – tenha assumido a presidência do país mais poderoso do mundo, tenha permanecido no poder até o fim do mandato, sobrevivendo a impensáveis escândalos, escapando de forma claudicante a um fundamentado processo de impeachment e ultrapassando múltiplas linhas vermelhas da decência moral, cultural, social e política é coisa já por si motivadora de enormíssima preocupação, passada, presente e futura em função dos perigosos precedentes já criados, abalando fortemente a confiança nas instituições do Estado de Direito e do republicano democrático na América.
Mas, se não me equivoco, a situação real é, no imediato, bem mais grave: continua em curso uma tentativa de golpe com o objectivo de instituir um regime autocrático ou, recuperando termo clássico, uma tirania, entendendo-se por tal a usurpação do poder por uma parte da sociedade (classe, grupo de indivíduos) ou por uma única pessoa, e o legislar em favor dessa parte do corpo societal.
O golpe foi anunciado antes da realização das eleições, quando as sondagens vaticinavam a vitória de Joe Biden. Passou à fase de execução prática com a comunicação feita por Donald Trump na Casa Branca, ao fim da tarde do dia 5 de Novembro de 2020, confirmando a apreensão por mim aqui manifestada em anterior artigo de opinião (“Eleições americanas: a possibilidade do impossível”, PÚBLICO, edição online de 28/10/20). Não se trata apenas da acção demencial de um indivíduo poderoso, determinada por uma ideia delirante (no sentido técnico/psiquiátrico da expressão); não, a tentativa de golpe está a ser co-realizada por uma parte da direcção do desfigurado Partido Republicano. O senador Ted Cruz parece querer assumir-se como líder da acção golpista. Não lhe faltam cúmplices (Lindsey Graham, Rand Paul, Ron Johnson, Roger Marshall, Mike Braun, Josh Hawley, Jim Jordan, etc.).
Não consigo entender o confiante optimismo dos comentadores políticos, de ambos os lados do Atlântico. Consideram que, no essencial, a ameaça foi abatida no acto eleitoral de dia 3 de Novembro, com Joe Biden a obter confortável maioria no voto popular (uma vantagem de mais de 7 milhões de votos). Depois seguiram-se dezenas de vitórias judiciais nos processos relativos às alegadas fraudes eleitorais. Por fim, a clara vitória no Colégio Eleitoral. Mas esse sentimento de vitória é enganador. Trata-se de uma meia verdade que disfarça uma realidade ameaçadora: a efectiva continuação da acção golpista, em crescendo.
É verdade haver a sorte de Donald Trump ser um incapaz no domínio da arquitectura ideológica. Não tem cultura política, não tem pensamento próprio organizado, não tem programa político, pensa e age de forma instintiva e unicamente em função da obsessão narcísica. Nunca conseguirá ser um autêntico líder político. Se na óptica do amigo da Liberdade e da Democracia há estes motivos de regozijo, também existem, em paralelo, motivos de muito séria preocupação. Porquê? Pelas razões principais que passo a enunciar.
Na sua imbecilidade, Trump não deixa de ser um deficiente moral com grande poder e imensa influência sobre uma ampla massa de cidadãos. Consciente desse poder, Trump e os seus acólitos apelaram à “voz da rua”, convocando aquilo a que significativamente chamam “the biggest event in Washington DC history”: The March for Trump. Na origem da iniciativa há um despautério pessoal, resultante da mente perturbada de um sujeito; mas a crença delirante, psiquiatricamente justificada, foi entretanto transposta para a mente de dezenas de milhões de eleitores republicanos, tendo-se transformado assim numa persistente crença delirante colectiva (para a qual ainda não há satisfatória explicação psiquiátrica). Milhares desses crentes vão participar na March enchendo as ruas que rodeiam o Capitólio. Como se irão comportar? Vão aceitar pacificamente a confirmação da vitória eleitoral de Biden? Não será evidente o risco de a manifestação se tornar violenta? Se a violência rebentar nas ruas, qual vai ser a resposta? Que fará o Presidente delirante? Irá aproveitar para declarar a lei marcial, utilizando-a como forma de impedir a transferência de poder?
Se Trump é um “ideólogo” inapto, o mesmo não acontece com os poderosos políticos antidemocratas do arruinado Partido Republicano que, esses sim, têm um programa político e servem-se da popularidade de um doido execrável para levarem avante um concertado golpe com o objectivo de travar o avanço da corrente progressista do Partido Democrático (Bernie Senders, Elizabeth Warren, Ocasio-Cortez, etc.) e implementarem um regime totalitário, talvez inspirado na Rússia de Putin.
Não perfilho da opinião daqueles que vêem na infinita estupidez uma particularidade do problema do perigo totalitário na América. A estupidez, com a sua dimensão infinita, está bem distribuída. Não há povos por natureza mais inteligentes e outros menos inteligentes. Há, no entanto, uma diferença relevante em relação a outras Nações, como p.e. a nossa: é que nos EUA os broncos, humana combinação da estupidez com a ignorância, estão organizados, nomeadamente no plano institucional. Mais: essa dimensão organizativa da “bronquite” ou do “bronquitismo” envolve uma componente paramilitar (milícias legalmente armadas – pasmosa realidade!). Como Timothy Snyder diria a partir dos ensinamentos da história do século XX, be wary of paramilitaries!
Quando o Congresso reunir hoje, dia 6, para contar e certificar os votos do Electoral College, não se sabe quantos senadores e membros da Casa dos Representantes vão objectar. Também se desconhece se Mike Pence, que presidirá à sessão, vai assumir uma atitude golpista, bloqueando o funcionamento da contagem e deixando que se instale o caos. Recorde-se que nesse momento o edifício estará cercado por muitos milhares de manifestantes movidos pela ideia delirante de ter existido uma monumental fraude eleitoral e de que Trump é o verdadeiro vencedor das eleições de 3 de Novembro. Acrescente-se que se no dia de ontem os republicanos não tiverem ganhado as eleições na Geórgia, perdendo o controlo do Congresso, os ânimos vão estar ainda mais exaltados (na altura em que escrevo ainda não se iniciou a votação).
Mesmo que hoje, dia 6, tudo corra dentro da legalidade e sem sobressaltos, Trump não vai desistir. Porque o funcionamento da sua mente não permite a concessão. Tenha-se presente um dos clássicos critérios de classificação da crença delirante enunciado por Karl Jaspers em uma obra de referência, Allgemeine Psychopathologie: é ele a incorrigibilidade. Ou seja, a apresentação de qualquer evidência, prova factual ou contra-argumento racional não produz modificação correctora no conteúdo da crença, por isso mesmo é ela classificada como sendo delirante. Mais assustador é que essa característica patológica tem-se manifestado no colectivo de 80% dos eleitores republicanos, devindo crença delirante colectiva, não tematizada pelo velho Jaspers (nem por outros) como patologia, mas que estranhamente parece conter também a incorrigibilidade como característica. Elemento favorecedor da germinação da polarização radical, um dos tradicionais pilares da tirania e de todas as formas de totalitarismo.
Adiciono duas notícias muito recentes que deixo à consideração do leitor: 1) O Irão emitiu um comunicado alertando para a hipótese de um ataque israelita contra tropas americanas estacionadas no Médio Oriente simulando autoria iraniana; 2) três dias depois de ter sido ordenado o regresso aos EUA do porta-aviões USS Nimitz foi emitida uma contra-ordem para que permanecesse na região do Médio Oriente; 3) todos os ex-secretários de Estado da Defesa vivos (ex-ministros da Defesa, na terminologia portuguesa) assinaram um documento conjunto apelando para a não intervenção das Forças Armadas na disputa eleitoral.
O golpe contra a democracia perpetrado a partir da Casa Branca com a cumplicidade explícita de boa parte da elite política republicana atingirá o ponto culminante nos próximos dias. A Democracia está sob ameaça. A estabilidade política mundial está em risco. Não se devia ter ouvido já alguma voz da União Europeia, do Reino Unido, de países como o nosso, manifestando preocupação com o evoluir dos acontecimentos nos EUA?
NOTA: este artigo foi redigido ao início da manhã do dia 5 de Janeiro de 2021, antes do início da votação na Geórgia.