O medo de vacinar os políticos
Os que livremente elegemos para nos governar são os nossos mandatários para a defesa do interesse geral. Excluí-los das prioridades da vacinação não é combater privilégios: é arriscar dar tiros nos pés.
Um jovem membro das forças de segurança ou do Exército está nas primeiras prioridades do plano de vacinação, mas não os ministros da Administração Interna ou da Defesa – nem o primeiro-ministro, que coordena o governo do país, nem o Presidente da República, que garante o cumprimento da Constituição, nem o presidente da Assembleia da República, que superintende à gestão da actividade legislativa, nem a procuradora-geral da República ou os presidentes dos tribunais superiores a que cabe a prossecução da Justiça. A ideia de incluir titulares de cargos políticos nas prioridades da vacinação foi considerada nos planos da Direcção-Geral da Saúde, mas acabou por nem ser discutida. Porquê? Porque no pavor que os políticos têm de assumir que o seu papel é de especial interesse para o funcionamento do Estado e da sociedade não cabe a noção de que, reciprocamente, são merecedores de especial cuidado e protecção.
O medo do julgamento popular na era das redes sociais que está na origem desta inibição é simétrico do sentimento cada vez mais banalizado de que os políticos são a excrescência da sociedade. Os políticos recusam assumir que é do interesse geral estarem protegidos do vírus para poderem desempenhar o papel de alto relevo na vida pública, porque sabem que essa decisão alimentaria o protesto contra o que seria por instinto designado como um privilégio. O medo de uns, porém, só exponencia a raiva de outros. Na essência, tanto um sentimento como outro é uma expressão do populismo. Preferimos arriscar ver um ministério sensível perturbado pela doença do seu titular de que arriscar o protesto dos que, em nome de um suposto igualitarismo, acabam por minar a defesa do interesse público.
Os políticos ou os magistrados têm direito a estatutos de privilégio como imunidade ou acesso reservado a aeroportos, mas no meio de uma pandemia não merecem protecção, porque desistiram de lutar pelos seus estatutos legítimos. Ora, abdicar desses estatutos é degradar as condições de exercício do poder. Já nem se pretende discutir que, como na Grécia ou na República Checa, fossem os primeiros a receber a vacina – em nome do exemplo que faz falta. Nem se questiona que fiquem atrás dos médicos ou enfermeiros, dos idosos dos lares ou dos que lá trabalham. Questiona-se, sim, que sejam postos em igualdade de circunstâncias com todos nós, como se as funções públicas que desempenham fossem tão pouco importantes como as de um qualquer cidadão. Não são. Os que livremente elegemos para nos governar são os nossos mandatários para a defesa do interesse geral. Excluí-los das prioridades da vacinação não é combater privilégios: é arriscar dar tiros nos pés.