Reino Unido aprova vacina da AstraZeneca-Oxford. Agência Europeia do Medicamento precisa de mais informações
O Reino Unido já encomendou cem milhões de doses da vacina — as suficientes para inocular 50 milhões de cidadãos. Portugal deverá receber “aproximadamente um total de 6,9 milhões de doses” desta vacina, que ainda está a ser analisada pelo regulador europeu. Miguel Castanho, especialista em vacinas, diz que esta opção é “mais fácil e barata” do que as vacinas da Pfizer e da Moderna.
A vacina desenvolvida em conjunto pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, no Reino Unido, foi aprovada nesta quarta-feira para uso de emergência pelo regulador britânico, o que significa que foi considerada segura e eficiente. O Reino Unido tornou-se, assim, o primeiro país do mundo a dar luz verde a esta vacina.
O Reino Unido já encomendou cem milhões de doses da vacina — as suficientes para inocular 50 milhões de cidadãos. A somar à da Pfizer, o Reino Unido, com 65 milhões de habitantes, terá doses suficientes para vacinar toda a sua população. “Agora podemos dizer com confiança que conseguimos vacinar toda a gente”, disse o ministro da Saúde, Matt Hancock, na BBC.
Esta vacina foi concebida nos primeiros meses de 2020 e testada nos primeiros voluntários a partir de Abril. Desde então, já foram conduzidos ensaios clínicos em larga escala, com vários milhares de voluntários.
Foi a segunda vacina a ser aprovada pelo regulador britânico: a primeira foi a da Pfizer-BioNTech, e foi com ela que se arrancou a campanha de vacinação naquela região.
O responsável da AstraZeneca, Pascal Soriot, disse que “hoje [quarta-feira] é um dia importante para milhões de pessoas no Reino Unido que vão ter acesso a esta nova vacina”, que “tem demonstrado ser eficaz, bem tolerada, simples de administrar e é fornecida pela AstraZeneca sem qualquer lucro”.
Dados publicados no início de Dezembro na revista médica The Lancet indicaram que a vacina é 62% eficaz quando administrada em duas doses completas da vacina, mas 90% eficaz quando administrada metade da primeira dose seguida de uma dose completa na segunda.
“A vacina é a nossa saída”
Para o ministro da Saúde britânico, Matt Hancock, a aprovação desta segunda vacina é “um momento significativo na luta contra esta pandemia”. “A vacina é a nossa saída”, disse.
“Temos as doses suficientes desta vacina para vacinar toda a população – cem milhões de doses. Em conjunto com os 30 milhões de doses da Pfizer, já temos o suficiente para duas doses para toda a população”, acrescentou. E, com uma metáfora bélica, apelou a que toda a população continuasse a seguir as regras de combate à pandemia: “Temos todos de continuar a fazer a nossa parte para impedir a disseminação, e agora ainda é mais importante porque a cavalaria já chegou: a vacina foi aprovada.”
Já Boris Johnson considera que a aprovação da vacina da AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford foi um “triunfo para a ciência britânica”, escreveu num tweet.
“Nós, os cientistas, não usamos termos como ‘game-changer’ [que “muda o cenário por completo”, em português] de forma leviana, mas é o que isso é”, começou por dizer Danny Altmann, professor de Imunologia do Imperial College de Londres, ouvido pela Reuters.
“Actualmente, o vírus está, uma vez mais, a provar a sua capacidade de devastação ao ultrapassar até os nossos esforços mais draconianos para quebrar as cadeias de transmissão ao limitar os contactos. Para sairmos deste descalabro, não temos outra alternativa que não ter uma maioria significativa da população com um alto nível de anticorpos neutralizantes. Com o anúncio de hoje, isso começa a estar ao nosso alcance”, disse o perito.
A aprovação desta nova vacina surge um dia depois de o Reino Unido ter registado o maior número de casos em 24 horas (53.135), bem como 414 mortos.
Duas vantagens
Para Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa e professor catedrático na Faculdade de Medicina da mesma universidade, esta vacina tem duas grandes vantagens em relação às vacinas da Pfizer e da Moderna, que já foram aprovadas para uso na Europa (a da Pfizer) e nos EUA (ambas): a facilidade de manuseamento e produção e o preço.
“É mais uma vacina, o que é sempre bom, sobretudo neste caso. E é uma vacina que, em termos práticos, é mais fácil e barata. A partir do momento em que pode ser armazenada num frigorifico doméstico, pode ser colocada em muitos mais pontos e administrada em mais locais, facilitando muito o plano de vacinação e aumentando a velocidade dessa vacinação”, diz o perito em vacinas.
Contudo, salienta, ainda falta conhecer alguns pormenores sobre a protecção que esta vacina oferece: “Ainda falta saber o que é que foi feito depois do anúncio dos resultados, em que um grupo de pessoas tinha uma protecção relativamente baixa (de 62%) e outro tinha uma protecção mais elevada (nos 90%) — havia uma média dos 70%, mas essa média não tem significado real”, ilustra. “Quem está a desenvolver a vacina ficou de fazer mais testes e, entretanto, anunciou que tinha a fórmula ideal para uma grande protecção — mas não sabemos detalhes desses resultados finais. Podemos apenas admitir que o regulador do Reino Unido e a Agência Europeia do Medicamento têm esses resultados e que demonstraram uma grande eficácia”, explicou ao PÚBLICO.
Quando chegará a Portugal?
Para já, ainda não se sabe. Esta vacina ainda não foi aprovada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla original), mas a Comissão Europeia já comprou vacinas à AstraZeneca, que poderão ser usadas assim que conseguirem luz verde. Foram comprados inicialmente 300 milhões de doses em nome de todos os Estados-membros, com a “opção de compra de cem milhões de doses adicionais”.
Questionada pelo PÚBLICO, a EMA afirma que está “actualmente a analisar os dados sobre esta vacina enquanto parte da revisão contínua que começou a 1 de Outubro de 2020”, à medida que esses dados vão ficando disponíveis. “Até agora, o comité de medicamentos para uso humano (CHMP) da EMA avaliou dados dos ensaios laboratoriais (dados não clínicos), e está actualmente a avaliar os dados sobre a qualidade da vacina (sobre os seus ingredientes e a forma como é fabricada), bem como as evidências sobre a sua eficácia e segurança provenientes de vários ensaios clínicos em curso”, acrescentou fonte oficial do regulador europeu.
A AstraZeneca enviou alguns detalhes durante o período do Natal, “em resposta às questões das equipas de avaliação” dos dados — e esta nova informação ainda está a ser revista. De acordo com o regulador, a task force criada pelo regulador para os assuntos relacionados com a covid-19 vai analisar toda a informação em conjunto com o CHMP, onde o Infarmed participa.
De acordo com o Ministério da Saúde, decorreu, esta quarta-feira, uma “reunião conjunta das 27 autoridades da UE e da EMA, esperando o Infarmed difundir mais informação muito em breve”.
Agência Europeia do Medicamento pediu mais informações sobre a vacina
Mais tarde, em comunicado divulgado após a reunião, a EMA explicou que a avaliação à vacina da covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford “tem progredido nas últimas semanas”. “Até agora, algumas evidências foram avaliadas sobre a segurança e eficácia [da vacina] provenientes de uma análise conjunta de dados clínicos provisórios de quatro ensaios clínicos que estão a ser realizados no Reino Unido, Brasil e África do Sul. O pacote de dados clínicos mais recentes foi recebido a 21 de Dezembro e está actualmente a ser avaliado”, acrescentou.
A EMA destaca ainda que é necessária mais informação sobre a qualidade, segurança e eficácia da vacina para atender ao “rigor exigido” para uma eventual autorização de comercialização condicional e que essa informação adicional já foi solicitada à empresa. Além disso, são também esperados mais dados, a partir de Janeiro, sobre os ensaios clínicos que estão ainda em curso e dados provisórios de um estudo em larga escala realizado nos Estados Unidos para o primeiro trimestre de 2021.
A agência lembra que a autorização temporária para o uso de emergência da vacina, concedida pelo Reino Unido, é distinta de uma autorização de comercialização e destaca que a “EMA, os seus especialistas europeus e a Comissão Europeia estão a trabalhar no sentido de obter uma autorização condicional de introdução no mercado das vacinas contra a covid-19, com todas as salvaguardas, controlos e obrigações que isso impõe”. O objectivo é garantir que a vacina cumpre os “rigorosos padrões da UE sobre segurança, eficácia e qualidade” e é acompanhada de “informações de prescrição completas e folheto informativo com instruções detalhadas para uso em segurança; um plano robusto de gestão de riscos e monitorização de segurança; controlos de produção, incluindo controlos de lotes de vacinas e condições de armazenamento; um plano de investigação para uso em crianças; e condições (pós-aprovação) e um quadro jurídico claro para avaliação dos dados emergentes sobre eficácia e segurança”.
O plano de vacinação português não especifica em que datas chegarão a Portugal, mas afirma que o processo de autorização da EMA já foi iniciado, com a avaliação dos dados provenientes de estudos laboratoriais. Ao PÚBLICO, fonte oficial do Ministério da Saúde especifica que Portugal vai receber “aproximadamente um total de 6,9 milhões de doses” da vacina da AstraZeneca.
No entender de Miguel Castanho, uma aprovação do Reino Unido não vai necessariamente “condicionar” a decisão da EMA. “O Reino Unido está numa situação muito peculiar por causa do ‘Brexit’”, começa por explicar. “Normalmente, os reguladores nacionais da União Europeia acabam por se guiar pelas decisões da EMA, até porque todos participam no processo. Existe um entendimento colectivo de que a decisão global é melhor do que decisões parciais.”
Mas, desta vez, o regulador britânico optou por agir individualmente, “dentro da tradição cultural do Reino Unido, que tentou sempre distanciar-se um pouco em relação a todos os outros”, completa. “Até do ponto de vista político, Boris Johnson apareceu sempre ligado ao processo da vacina. Esta é ‘a’ vacina do Reino Unido, que apostou muito nela.”
Apesar de não ser um sinal inequívoco de que a aprovação europeia está para breve, Miguel Castanho admite que é um “indicador muito importante” porque “o regulador do Reino Unido é obviamente competente e este é um país com grande tradição na ciência e tecnologia e no sector farmacêutico.”
Como funciona?
Esta vacina funciona de forma diferente das da Pfizer-BioNTech (aprovadas pelo Reino Unido e pelo regulador europeu) e da Moderna (já aprovada nos EUA): em vez de usar ARN-mensageiro, usa vectores virais.“A principal diferença é a forma como se coloca o ARN dentro das células; uma vez estando o ARN correspondente à proteína S dentro da célula, passa a ser tudo igual”, explica Miguel Castanho.
Em suma, “a vacina da Pfizer e da Moderna injectam no corpo o ARN que é colocado dentro das células com a ajuda de lipossomas lipídicos”, ou seja, “microgotículas de gordura” que facilitam essa entrada. Um processo mais “simples” do que o da vacina que foi aprovada nesta quarta-feira no Reino Unido.
No caso da vacina da AstraZeneca, “vai buscar-se um vírus inofensivo para humanos, um adenovírus”, e “dentro dele coloca-se o ADN desse vírus e um troço do ADN que corresponde à proteína S” e que será convertida em ARN. .
Quais são, então, as vantagens deste processo mais complexo? “O ARN é uma molécula mais instável do ponto de vista químico. Ela reage muito facilmente com outras moléculas e até reage consigo própria, e é por isso que a vacina da Pfizer tem de ser guardada a -70ºC, para arrefecer a baixa temperatura e para se minimizarem as reacções químicas”, explica o especialista.
Na vacina da AstraZeneca, não existe o ARN em si, mas o ADN que é “muito mais estável”, e a vacina pode ser conservada em frigoríficos comuns, a uma temperatura de armazenamento de 2ºC a 8ºC, bem mais elevada do que no caso da Pfizer e Moderna (-20ºC).
“Por outro lado, esse troço de ADN está dentro de um vírus e esse vírus, para produção de vacina, é muito melhor porque se replica a si próprio”, continua, o que torna a produção bastante mais barata. “As vacinas de ARN têm de ser de síntese química.”
A eficácia é menor, quando comparada com as outras opções disponíveis, que dão conta de uma eficácia perto dos 95%. De acordo com a AstraZeneca, com base nos ensaios clínicos com 11.635 participantes, a eficácia era de 70,4% em evitar uma infecção sintomática por covid-19 14 dias depois de os voluntários receberem as duas doses da vacina.