Covid-19: Alunos que ajudavam colegas carenciados são quem agora precisa de apoio

Os professores e funcionários sinalizam cada vez mais casos de dificuldades financeiras. Nalgumas escolas, neste Natal, os alunos foram os destinatários das campanhas de solidariedade para as quais normalmente contribuem.

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Daniel Rocha

Alunos de famílias de classe média, que antes participavam em campanhas de solidariedade, são agora quem precisa dessa ajuda e algumas escolas receiam não conseguir acudir a todos.

Os efeitos da crise económica provocada pela pandemia de covid-19 começam a notar-se nas escolas, segundo relatos de directores escolares feitos à Lusa.

Nas salas de aula ou nos recreios, os professores e funcionários sinalizam cada vez mais casos de dificuldades financeiras. Entre os alunos repetem-se as histórias de familiares atirados para o desemprego.

“Já não são as tradicionais famílias que estão em dificuldades. A classe média também está a passar mal”, revelou o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos de Escolas Públicas (ANDAEP).

Segundo Filinto Lima, “a necessidade de acudir às famílias está a aumentar e por isso a faceta social das escolas está também a emergir”.

A pandemia não conseguiu abalar tradições como os projectos de solidariedade na época de Natal. Mas, em alguns estabelecimentos de ensino, alterou os destinatários.

Se antes tinham como objectivo principal ajudar as famílias de bairros carenciados ou “os vizinhos da escola”, agora voltaram-se para os seus estudantes, contou Filinto Lima. 

Em Loures, a paróquia costumava receber os cabazes de Natal do agrupamento. Este ano foram todos entregues a estudantes: "Sentimos que tínhamos que nos virar mais para dentro, porque os nossos alunos são quem mais precisa”, disse à Lusa a directora do agrupamento, Irene Louro.

Também no Norte, 89 famílias de estudantes do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos receberam na semana passada um cabaz.

“Algumas das famílias que antes ofereciam alimentos estão agora do outro lado, a receber ajuda”, alertou Filinto Lima, que é também director do Agrupamento Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia.

Segundo este director, há escolas que já não conseguem acudir a todos. O problema não está na quantidade de bens recolhidos, mas no aumento de pessoas a precisar de ajuda. 

Os últimos números do Instituto de Emprego e Formação Profissional mostram um país com mais de 400 mil desempregados e mais de 12 mil casais em que ambos deixaram de ter qualquer fonte de rendimentos

A estes, juntam-se milhares de “desempregados invisíveis”, que não estão inscritos nos centros de emprego nem recebem subsídio de desemprego. Muitos destes casos são sinalizados pelas escolas.

Chegar às pessoas nas cidades

Nas grandes cidades, os vizinhos mal se conhecem e a entreajuda torna-se mais difícil. Muitas vezes, só o convívio e ambiente escolar conseguem aniquilar o anonimato das grandes urbes.

“Há muita pobreza encoberta e as pessoas têm receio e vergonha de mostrar o quanto necessitam. Nós conhecemos bem as famílias e, infelizmente, são muitas as que precisam. Mas para nós é fácil falar com elas”, contou Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Directores Escolares (ANDE).

Manuel Pereira é também director do Agrupamento de Escolas General Serpa Pinto, em Cinfães, que ofereceu mais de 50 cabazes de Natal aos seus alunos. Mas Manuel Pereira lembrou que, nas escolas, as acções de solidariedade não têm “época” nem prazo de validade. Acontecem durante todo o ano.

Dão-se refeições que não estavam contempladas, fazem-se campanhas de recolha de material escolar, de roupa e até de brinquedos. É um trabalho silencioso, contínuo, só reconhecido pela comunidade escolar.

“São coisas genuínas que nascem das comunidades educativas”, saudou Filinto Lima. 

Muitas das iniciativas começam da percepção dos funcionários de que algo de estranho se passa com um aluno, mas também nascem de conversas e partilha de preocupações entre professores.

“Os alunos de famílias mais carenciadas procuram a escola e nós procuramos ajudar com aquilo que podemos”, corroborou Irene Louro, sublinhando que as acções solidárias fazem parte da “filosofia da escola”.

Resposta às sinalizações

Desde Março, quando começou o confinamento, o trabalho não tem parado. Nas escolas de Cinfães, por exemplo, realizaram-se três campanhas ao longo do ano. Resultado: à casa dos alunos chegaram alimentos como arroz, massa, azeite, leite, pão ou cereais, contou o director. 

Naquela vila da zona de Viseu, as escolas trabalham em colaboração com a autarquia que é avisada quando surge um caso de carência económica. As autoridades locais passam a garantir cabazes de alimentos a essas famílias, explicou Manuel Pereira.

Em todas estas acções, as escolas “apreciam e motivam” quem dá e empenham de igual forma para que a ajuda seja feita de forma “discreta”, sublinhou por seu turno a directora das escolas em Loures.

À missão de ensinar as escolas somam assim o trabalho solidário, mas sem procurar reconhecimento: "Tentamos fazer isto de uma forma quase licenciosa”, contou Irene Louro.