Hospital de São João está a preparar-se para terceira vaga de covid-19 já em Janeiro

O Serviço Nacional de Saúde tem que se reinventar, defende Fernando Araújo, que reclama a autonomia dos hospitais, sublinhando que a pandemia mostrou que isso é possível.

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Nelson Garrido
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Paulo Pimenta

O Centro Hospitalar e Universitário de São João está a preparar-se para uma eventual terceira vaga da pandemia já em Janeiro, diz o presidente do conselho de administração, Fernando Araújo, que discorda da forma como foram atribuídos prémios aos profissionais de saúde e critica o centralismo de Lisboa. “Muito preocupado” com os doentes não covid-19, o médico e ex-secretário de Estado adjunto da Saúde adianta que as listas de espera no São João diminuíram 50% devido à diminuição da referenciação por parte dos centros de saúde e às faltas dos doentes, que duplicaram durante a pandemia. “Na cardiologia e na oncologia foram referenciados menos um em cada três doentes em comparação com a média dos últimos anos. Estamos a perder doentes”, lamenta.

Qual é o ponto da situação no hospital de São João? 
Hoje [terça-feira] temos 120 doentes internados, dos quais 45 em cuidados intensivos. A procura da urgência por parte dos doentes com covid-19 tem reduzido e a taxa de positividade nos testes também tem diminuído, mas continuamos com um número muito elevado de doentes nos cuidados intensivos, muitos dos quais graves e demorará ainda dias ou semanas a poder retirá-los dos ventiladores. 

O hospital de São João foi pioneiro na adopção de várias medidas logo no início da pandemia. A tutela foi lenta nas decisões que vieram a validar posteriormente as opções do São João? 
Nós tivemos que tomar decisões rapidamente. Às vezes as direcções nacionais precisam de mais dados para tentar encontrar com grupos de trabalho e peritos decisões bem fundamentadas e que possam ser aplicadas a todo o país. Mas na altura nós não tínhamos outra alternativa se não a de avançar com o processo. O uso de máscaras foi uma das medidas mais relevantes, as infecções reduziram a pique no hospital. A primeira norma da Direcção-Geral da Saúde também dizia que os doentes tinham que ser internados, mas, se internássemos todos, não tínhamos capacidade para dar resposta. A decisão de acompanhar em ambulatório, telefonando aos doentes menos graves em casa, foi a tábua de salvação para evitar o colapso hospitalar. 

Os planos de contingência nacionais foram elaborados sem ouvir os hospitais? 
Foram de alguma forma ouvidos tardiamente, na segunda vaga especialmente. O facto de o plano Outono-Inverno ter surgido em cima do início do Outono e de forma muito genérica levou a que, se algumas instituições estivessem à espera de regras muito práticas, houvesse um atraso significativo na implementação dessas regras. Entramos nesta segunda vaga com excesso de confiança e isso tem os seus custos. 

Está à espera de uma terceira vaga em breve?  
É previsível que possa haver uma terceira vaga. Esperemos que não, mas estamos a preparar-nos claramente para uma terceira vaga, já em Janeiro. Temos que nos preparar para os piores cenários. É previsível que aumente a pressão na urgência e no internamento em meados de Janeiro, por isso não desmobilizamos a máquina toda, vamos mantendo-a e melhorando até alguns aspectos para, quando necessário, poder activá-la. Actualmente estamos no nível três de quatro níveis do plano de contingência. 

O aparecimento da nova estirpe do coronavírus no Reino Unido é um sinal de que ainda vamos ter muitos percalços nos próximos meses? 
Penso que não. É verdade que as variantes existem, que o vírus vai mutando, mas, quanto à eficácia em si desta vacina, diria que está salvaguardada do ponto de vista mais global.

Acha que o Governo foi muito permissivo em relação ao Natal ao não instituir um máximo de pessoas em cada casa nessa noite?  
Temos algum receio que esta quadra natalícia leve a um aumento de novas infecções e que tenhamos em meados de Janeiro um novo pico de internados e, sobretudo, de internados nos cuidados intensivos.

A Ordem dos Médicos sugeriu um máximo de 10 pessoas na ceia de Natal. Insisto: o Governo devia ter indicado um número máximo? 
Não há nenhum número mágico. O número vai variando de país para país. Acho que acima de tudo tem que haver um enorme civismo. 

Tem dito que o SNS não está a trabalhar de forma coerente e integrada. Pode ser mais específico? 
Tem que haver um esforço maior, uma estratégia em conjunto, uma visão global para que os doentes não andem de um lado para outro sem saberem onde se devem dirigir.

Também afirmou que o SNS se encontra num ponto sem retorno e que terá no biénio 2020/2021 a sua maior prova de vida. Antevê uma crise no curto prazo? 
A pandemia trouxe aspectos muito negativos mas também trouxe oportunidades e desafios. Olhar para o futuro não é voltar a construir o SNS que tínhamos em 2019 mas sim construir um SNS muito mais eficaz e centrado no utente. A prova de vida do SNS é reinventar-se. A covid trouxe-nos uma mudança de paradigma, temos que aproveitar esse élan para mudar o SNS. Uma das questões muito discutidas passa pela referenciação dos utentes pelos cuidados saúde primários. Esta é uma lacuna que tem que ser rapidamente ultrapassada. Tivemos este ano cerca de menos 30% de referenciações dos cuidados de saúde primários e um aumento das faltas dos doentes às consultas. Na cardiologia e na oncologia foram referenciados menos um em cada três doentes em comparação com a média dos últimos anos. Estamos a perder doentes.

Está preocupado com os doentes não covid?  
Estou muito preocupado com esses doentes. Quando não se fazem rastreios, quando não se fazem diagnósticos, isso significa que perdemos doentes que não conhecemos. A incidência da patologia não reduziu, os enfartes não diminuíram…Se não apanhamos os doentes precocemente vamos apanhá-los para o ano numa fase mais tardia. E estamos a falar de números muito elevados. 

As listas de espera baixaram muito? 
Devemos acabar o ano com menos 50%. A verdade é que isso aconteceu muito à custa da redução da procura e do aumento da produção no Verão.

Qual é a percentagem de doentes que deixaram de ir às consultas? 
Em geral temos uma taxa de absentismo por volta de 8 a 10%, mas com a pandemia duplicou, oscila entre 15 a 20%, o que significa que as pessoas não procuram os cuidados de saúde por causa de algum receio.

Quantos profissionais de saúde contrataram por causa da pandemia? 
Contratamos cerca de 200 pessoas, sobretudo enfermeiros e assistentes operacionais, médicos foi numa quantidade muito limitada. Os contratos eram por quatro meses, eventualmente renováveis, e isso no caso dos médicos não é muito atractivo.

Não está previsto contratar mais profissionais para enfrentar a eventual terceira vaga? 
O que está previsto são substituições. Só temos autonomia para substituições, para contratos de quatro meses. Precisamos de autonomia relativamente ao Ministério das Finanças para fazer contratos sem termo nas áreas que achamos necessário. O que esta primeira vaga demonstrou foi a capacidade de termos autonomia com responsabilidade. Não é possível continuarmos por vezes meses e meses à espera da contratação de um profissional de saúde quando temos estudos que demonstram claramente a mais-valia, até do ponto de vista económico, dessa contratação. 

Como é que olha para o prémio atribuído a apenas alguns profissionais? 
Com alguma insatisfação. Nós actuamos em equipa. Para alguns estarem a tratar doentes covid outros tiveram que estar a tratar doentes não covid com o mesmo empenho e o mesmo esforço. E há outras áreas de suporte tanto ou mais importantes que também não vão ter prémio. Isso gera alguma desilusão. Acho que [o prémio deveria ser atribuído] de uma forma global aos que estiveram a trabalhar.  

A ala pediátrica devia estar concluída em 2021 após um investimento de 20 milhões de euros. Estas metas serão alcançadas?
Estamos a fazer todos os esforços nesse sentido. É verdade que houve problemas porque tivemos profissionais da construção infectados, material que vinha de outros países e que não chegou a tempo e horas, mas continuo com enorme expectativa de cumprir a promessa que era ver finalmente este sonho ser concluído com sucesso em 2021. 

É mais difícil ser presidente do conselho de administração do São João ou secretário de Estado? 
É muito mais difícil ser presidente do conselho de administração do centro hospitalar. É verdade que, quando somos secretários de Estado, tomamos medidas muito transversais, mais abrangentes e impactantes, mas num hospital estamos muito mais próximos da realidade, dos doentes, dos profissionais, dos problemas e isso acaba por ser muito mais dramático e exigente. Lá em baixo na João Crisóstomo [no Ministério da Saúde] estamos muito longe das pessoas. 

Disse que em Lisboa se desconhece o resto do país. 
Não tenho nenhuma dúvida, cada vez mais sinto isso. A realidade, nomeadamente no Norte do país, é muito menos conhecida em Lisboa, nos ministérios e administração pública, e isso limita claramente a capacidade de intervenção nos locais e nas regiões. Isso também devia ser repensado. 

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