Três centenas de centros de saúde obrigados a recolher milhares de máscaras sem garantia de qualidade

Administração Regional de Saúde do Norte foi responsável pela compra de milhares de equipamentos de protecção sem certificado válido, que custaram 410 mil euros. Vendedor, que habitualmente comercializa materiais de construção e mobiliário, fez três contratos com aquela entidade no valor global de mais de um milhão de euros

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Rui Gaudencio

A Administração Regional de Saúde (ARS) Norte foi obrigada a ordenar na semana passada a devolução de muitos milhares de máscaras que chegaram a ser utilizadas por milhares de profissionais de saúde em mais de três centenas de centros de saúde da região Norte, após o Infarmed ter detectado que os equipamentos não possuíam qualquer garantia de qualidade.

Em causa está uma elevada quantidade de semi-máscaras de proteção respiratória, conhecidas como FFP2, que foram distribuídas com uma embalagem individual onde está escrito Medical Protective Mask – ZHUSHI, além de vários caracteres chineses. No plástico que envolve o equipamento há ainda a indicação das normas técnicas que alegadamente a máscara respeita e o nome de uma empresa que se depreende ser o fabricante, Shandong Zhushi Pharmaceutical Group Co., Ltd. O problema é que as regras técnicas referidas na embalagem não são as que definem os requisitos obrigatórios das FFP2, as que asseguram o maior nível de protecção e são usadas pelos profissionais de saúde, mas são as normas aplicáveis a um outro tipo de máscaras, as cirúrgicas, que possuem um nível de filtração inferior, que não impede a passagem das partículas mais pequenas.

Foi após ter detectado este problema que o Infarmed alertou a ARS Norte. “Do ponto de visto técnico-regulamentar, é nosso parecer que se trata de um produto não conforme relativamente ao qual não existe qualquer evidência formal de conformidade que assegure a sua segurança e desempenho”, escreveu a 4 deste mês num e-mail enviado à ARS, um responsável da Direcção de Produtos de Saúde do Infarmed. A mensagem, intitulada “Urgente – acção de fiscalização máscara Zhushi”, referia ainda que o Infarmed recomendava que o produto não fosse utilizado e pedia à ARS Norte a identificação do importador em causa para que fosse “possível diligenciar no sentido de adoptar as medidas restritivas de mercado necessárias”.

Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, o mesmo responsável do Infarmed remete um novo e-mail para uma responsável da Unidade de Aprovisionamento - Logística da ARS agradecendo a “célere colaboração” e a insistir que as máscaras não devem ser utilizadas, o que deve ser transmitido às unidades de saúde a quem o produto foi entregue. Apesar de o alerta ter chegado na sexta-feira 4 de Dezembro, só passado uma semana, ou seja, na sexta-feira 11 de Dezembro é que 20 dos 21 Agrupamentos de Saúde do Norte – que congregam cerca de 375 unidades de saúde – receberam a indicação de “suspensão imediata de utilização” das máscaras, bem como da sua devolução ao armazém.

Recorde-se que os problemas com os certificados apresentados na venda de máscaras, nomeadamente a respectiva falsificação, foi uma situação noticiada em Julho pelo PÚBLICO, que antes já noticiara o uso de um certificado falso ou inválido na venda de três milhões de máscaras adquiridas pela Direcção-Geral da Saúde.  

O PÚBLICO falou com profissionais de saúde destas unidades que garantiram que usaram as máscaras durante mais de duas semanas até as mesmas terem sido recolhidas. Ainda não é certo se as máscaras cumprem ou não os requisitos de segurança, uma vez que não estão acompanhadas de certificados válidos. Por isso mesmo, o PÚBLICO questionou o Infarmed sobre se foram realizados alguns testes às máscaras, mas a entidade optou por não responder remetendo para uma mensagem lacónica enviada pela ARS Norte. Esta administração regional apenas confirma que as FFP2 “foram já recolhidas e devidamente substituídas junto das unidades que as tinham recepcionado”. Mas recusa-se a revelar quantas máscaras comprou, a quem, quanto custaram e quantas foram efectivamente usadas. “Todo o processo respeitante à devolução e compensação por parte da empresa fornecedora está a ser devidamente tratado nos termos do contrato estabelecido e legislação em vigor para o efeito”, acrescenta, sem responder à maioria das questões colocadas pelo PÚBLICO.

Após a ARS Norte se ter recusado a revelar a quem comprara as máscaras, o PÚBLICO fez diversas pesquisas no portal dos contratos públicos tendo concluído, face à informação disponível, que houve apenas uma empresa que vendeu máscaras à ARS Norte em 2020. Trata-se da STREIGHTEX uma pequena firma que se dedica habitualmente à venda de materiais de construção e móveis, não tendo historial na venda de dispositivos médicos (como são classificadas as máscaras cirúrgicas) ou equipamentos de protecção individual (como são classificadas FFP2). A sociedade, que no final de 2019 tinha apenas cinco funcionários, conseguiu vender, através de três ajustes directos, mais de um milhão de euros – 1.046.000  – de uma quantidade não especificada no portal dos contratos públicos de máscaras cirúrgicas e FFP2 (valor que representa 70% do volume de negócio da empresa em 2019).

O primeiro contrato, no valor de 95 mil euros, foi assinado a 3 de Setembro. Passados seis dias, a 9, foi celebrado um outro contrato no valor de 541.500 euros, ambos para a aquisição de máscaras cirúrgicas. Nenhum dos documentos está disponível no portal dos contratos públicos, como devia acontecer. A 20 de Outubro é assinado um terceiro contrato, no valor de 410.400 euros para a aquisição de “Máscara Protecção Profissionais - FFP2”. Também neste contrato não está indicado o número de máscaras adquiridas, o que permitiria calcular o valor unitário das mesmas. 

O PÚBLICO confrontou a administração regional com esta informação, tendo questionado o seguinte: “Como é que a ARS contratou três contratos no valor superior a um milhão de euros a uma empresa que não tem nenhum historial de venda destes produtos e nem sequer confirmou a validade e conformidade dos certificados apresentados?”. A resposta foi novamente lacónica. “O assunto em questão está a ser acompanhado pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), motivo pelo qual, até à conclusão da investigação em curso, não nos vamos pronunciar sobre o mesmo”, justificou a ARS Norte. Fica assim sem se saber se os problemas de falta de certificação também afectam as máscaras cirúrgicas vendidas. 

Na sequência desta resposta, o PÚBLICO dirigiu um conjunto de perguntas à ASAE, que não respondeu em tempo útil. Também a STREIGHTEX, com quem insistimos para obtermos uma reacção e alguns esclarecimentos, não enviou qualquer resposta. Isto apesar de termos conseguido falar com dois funcionários, que afirmaram não serem as pessoas indicadas para nos responder. O comercial da zona Norte remeteu-nos para o geral da empresa, um telemóvel, onde uma senhora atendeu, recusando-se a reencaminhar a nossa chamada para os responsáveis da empresa.

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