Vamos mesmo continuar a deixar morrer os nossos idosos?
Compreendemos a urgência de proteger primeiro quem nos protege. Porém, o respeito pelo princípio ético-jurídico da vulnerabilidade não implicaria que se protegesse primeiro quem carece mais de proteção?
No dia em que Portugal bateu um “novo recorde de óbitos por covid-19: 98 mortos”, comparamos os critérios do nosso Plano de Vacinação Covid-19 com os do plano adotado no Reino Unido, ambos de dezembro de 2020. Este último plano determina que primeiro serão vacinados os residentes em lares de terceira idade e os que lhes prestem cuidados; depois, os que tenham 80 ou mais anos e os profissionais de saúde e de segurança social diretamente envolvidos na prestação de cuidados…
Em Portugal não é dada prioridade aos maiores de 65 anos sem patologia associada, que são remetidos para a segunda fase, apesar da maior letalidade conhecida da doença à medida que a idade avança e de os resultados dos recentes estudos divulgados pela Pfizer revelarem a previsível eficácia da sua vacina também nestes grupos etários. São vacinados, antes deste grupo, nomeadamente, os “profissionais das forças armadas, forças de segurança e serviços críticos”.
Compreendemos a urgência de proteger primeiro quem nos protege. Porém, o respeito pelo princípio ético-jurídico da vulnerabilidade não implicaria que se protegesse primeiro quem carece mais de proteção? A prioridade conferida às Forças Armadas implicará que exercitará primeiro o seu direito a ser vacinado o militar responsável pela vigilância de um dos Paióis de Tancos, relativamente a um doente oncológico? Ou seja, será dada prioridade no exercício deste novo direito, a todos os membros das aludidas Forças, ainda que não prestem assistência (sanitária ou outra) direta e essencial à população? Os “serviços críticos” incluem os membros do Governo?
Outras soluções constantes do plano de vacinação apresentado suscitam perplexidade: atribuímos, por exemplo, prioridade na 1.ª fase de vacinação aos “doentes com insuficiência cardíaca ou doença coronária” com 50 ou mais anos. Os doentes cardíacos com idade inferior sofrem todos de doença menos severa? O critério etário é o critério justo para delimitar o universo a vacinar em todos os casos concretos de patologia indicados nesta fase? Propõe-se que as vacinas sejam, em parte, administradas a nível dos cuidados de saúde primários, i.e., dos Centros de Saúde. Não estarão estes já sobrecarregados com os cuidados (em atraso) a prestar aos doentes não covid-19? Não seria preferível, atenta a inegável complexidade logística da operação, recorrer sobretudo às Forças Armadas para o efeito?
Cerca de 80 pessoas têm morrido, em média, por dia, em Portugal com covid-19, nas últimas semanas. Destas, mais de três quartos têm idade superior a 70 anos. Até que lhes seja administrada a vacina, talvez em maio de 2021, num cenário previsível e já anunciado de escassez, muitas mais morrerão. A morte causada por outras patologias foi nestes últimos meses, também neste grupo etário, como recentemente noticiado na TSF, a mais elevada das últimas décadas: desde 1946 que não se morria tanto, num único ano em Portugal, se se mantiver ao mesmo ritmo, até ao final do ano.
Apesar do caráter global dos efeitos da pandemia, não compreendemos a indiferença política que parece estar associada à morte diária e constante, desde a Primavera de 2020, de inúmeros membros da minoria silenciosa que são os nossos idosos. Morte que inexplicavelmente continuou a dar-se, segundo as recentes estatísticas do INE, mesmo entre a primeira e a segunda vaga da pandemia covid-19, tendo ocorrido um pico de mortalidade no mês de julho. E que provavelmente acentuar-se-á à medida que o Inverno progrida, com a não prestação de todos os cuidados de saúde indispensáveis a quem deles carece (pense-se na administração da vacina da gripe ainda não concluída, quando o risco maior de a contrair será nos próximos meses).
Corresponderão os números descritos a uma opção ultraliberal não assumida? O ritmo diário de mortes de maiores de 70 anos, por covid-19 e por outras causas, a manter-se, permitirá, daqui a dois ou três anos, um possível reequilíbrio das contas da Segurança Social e da Saúde. Teremos uma população mais jovem, saudável e produtiva, uma vez falecidos (previsivelmente) muitos milhares de idosos.
Os “novos idosos” nesse normal retomado uma vez finda a pandemia serão os Portugueses com mais de 65 anos, se quisermos manter a categoria “terceira idade”. Bem, durante a Revolução Francesa o Conselho dos Anciãos era composto pelos que tinham mais de 40 anos… Será que ainda ficaremos numa situação civilizacional confortável?
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico