Covid-19: juíza proíbe crianças acolhidas em lares de irem a casa no Natal
Tribunal de Oliveira do Bairro invoca o “contexto pandémico”, o “estado de emergência”, “o risco sério de surgirem casos de covid-19 em casas de acolhimento, caso os jovens e as crianças se desloquem para diferentes pontos do país e se encontrem com familiares e amigos”.
Se pudesse falar com a juíza do Tribunal de Oliveira do Bairro que não o autoriza a passar o Natal com a mãe, a avó e a bisavó, B. dir-lhe-ia que “tivesse um bocado de coração”. O risco de provocar um surto de covid-19 na casa de acolhimento de jovens em perigo não lhe parece um motivo válido. “Ainda este fim-de-semana fui a casa e não posso ir no Natal? Vou ficar a ver os outros a ir?”
Não é caso único. A juíza do Tribunal de Oliveira do Bairro terá ditado igual destino a todas as crianças e jovens acolhidas em lares de infância e juventude cujo caso avaliou. O PÚBLICO confirmou pelo menos nove. A magistrada não quis prestar declarações, alegando ter de cumprir o dever de reserva que a impede de emitir opiniões sobre processos, mas, observando vários despachos, verifica-se que a argumentação é sempre igual. Por igual, neste caso, entenda-se o recurso ao método do “copia e cola” de uns processos para outros. A família pede ao tribunal que autorize. O Ministério Público propõe que se indefira, invocando o “contexto pandémico”, o “estado de emergência”, “o risco sério de surgirem casos de covid-19 em casas de acolhimento, caso os jovens e as crianças se desloquem para diferentes pontos do país e se encontrem com familiares e amigos”. A juíza afirma que concorda, “na íntegra”, e indefere o pedido apresentado.
O alerta foi lançado pela AjudAjudar – associação para a promoção dos direitos das crianças e jovens, nascida em plena pandemia. Nos últimos dias, tem recebido vários relatos sobre crianças e jovens sem autorização para ir a casa no Natal pelo “perigo potencial” que o convívio familiar pode representar no regresso à casa de acolhimento – apesar de terem permissão para passar férias e mesmo fins-de-semana com a família.
“Não é só falta de bom senso, é também desconhecimento do quadro legal aplicável”, comenta Sónia Rodrigues, presidente da AjudAjudar. Nada no decreto do estado de emergência ou nas normas ditadas pela Direcção-Geral de Saúde impedem tal convívio. “Nem sequer as regras de proibição de circulação entre concelhos são de aplicar nesse contexto, medida em que salvaguardam o cumprimento dos convívios fixados no acordo de regulação das responsabilidades parentais, devendo tal excepção estender-se às crianças com medidas de protecção, incluindo a de acolhimento residencial, sob pena de violação do princípio de igualdade.”
Para perceber o grau de desigualdade que a decisão introduz é preciso ter em conta que cada rapaz ou rapariga tem um processo cujo titular é uma comissão de protecção de crianças e jovens (CPCJ) ou um tribunal de família e menores. Cada casa tem crianças e/ou jovens enviados por uma variedade de CPCJ e de tribunais. E cada tribunal ou CPCJ acompanha crianças e jovens acolhidos em diversas casas.
Retome-se o exemplo de B. Na casa em que lhe toca morar, há um rapaz que não tem retaguarda familiar segura (nem se põe a hipótese de passar o Natal com a família) e 19 que a têm: os sete com processo no Tribunal de Oliveira do Bairro não obtiveram autorização e os doze com processos noutros tribunais sim.
“Ela não está certa”
Se pudesse falar com a juíza, B. dir-lhe-ia “que ela não está certa, porque os outros tribunais autorizaram os outros rapazes a ir a casa”. “Não é justo uns irem e outros não irem. É estranho que me deixe ir a casa ao fim-de-semana e não me deixe ir no Natal. Tenho família e vou ter todos os cuidados. E, se for preciso, faço o teste. Já ganho o meu dinheiro. Posso pagar.”
O rapaz, de 17 anos, reconhece que fazia o que queria, que fazia asneiras, que faltava às aulas, que não pegava nos livros, que a mãe não tinha mão nele. Isso é que levou o tribunal a tirá-lo à mãe, à avó e à bisavó e a pô-lo ali. Esse B. está lá atrás. Trabalha de dia, como soldador, e estuda à noite, para obter uma equivalência ao 9.º ano. “Ando a cumprir com tudo.” Usa máscara no trabalho, máscara na escola, máscara na instituição. “O Natal é uma época especial. A minha avó faz anos no dia 25. A minha bisavó tem 90 anos. Qualquer deslize, podem ir embora…”
Entre as famílias, a mesma incompreensão. “Eu fui ao tribunal”, diz o pai de F., de 16 anos. “Meti as cartas para o menino vir passar o Natal e a passagem de ano. A doutora recebeu as cartas a dizer que todos os tribunais disseram que sim menos o de Oliveira do Bairro e que este se justifica com a pandemia.” Parece-lhe absurdo. “O menino vai à escola todos os dias, um fim-de-semana por mês vem a casa. Não cabe na cabeça de ninguém que não venha passar o Natal comigo.”
A alternativa que o tribunal dá a este pai é deslocar-se à instituição para ver o filho nos dias festivos, usando máscara, mantendo a distância física e a desinfecção frequente. “O menino não pode vir passar o Natal comigo e somos só dois e eu posso ir lá passar o Natal com ele e vamos ser muitos”, prossegue. Pensando bem, o risco que o seu rapaz corre ao ir a casa é inferior ao risco que ele corre ao ir à instituição – e vai lá, todas as sextas-feiras. “Acho que a juíza tem o dever de mudar de ideias.”
A sensação de injustiça é ainda maior em casas de acolhimento onde crianças ou jovens não conhecem quem tenha sorte idêntica. Numa casa que acolhe raparigas, oito têm retaguarda familiar capaz de as receber no Natal e só uma não obteve autorização para ir passar o Natal com a família – a única com processo naquele tribunal. A instituição pediu à juíza que reconsiderasse. Noutra casa, que acolhe crianças e jovens de várias idades, também só uma rapariga com processo naquele tribunal viu ser-lhe negada a hipótese de passar o Natal em família. A equipa está a tentar fazê-la compreender que a juíza tomou aquela decisão com base no que pensa ser melhor para ela.
“Sei que é preciso ter sorte na família em que se nasce, sei que é preciso ter sorte na casa de acolhimento, agora também é preciso ter sorte na comarca à qual se pertence”, reage João Pedro Gaspar, investigador e coordenador da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos, que faz supervisão de acolhimento em Castelo Branco, Portalegre, Lisboa e Porto e não conhece situações semelhantes. Parece-lhe demasiado. “Se há um risco que impede de ir a casa durante o ano, também impede no Natal. O que não impede durante o ano também não impede no Natal.”
Não será caso sem par. Sónia Rodrigues diz que, noutras partes do país, umas mais a norte, outras mais a sul, há casas de acolhimento a pedir aos juízes de tribunais de famílias e menores que tomem este tipo de decisão. “Muitas vezes, são casas que pertencem a instituições com outras valências”, aponta aquela investigadora, especialista em acolhimento residencial, supervisora de diversas casas. Escudam-se na possibilidade de contágio de idosos, o que, em seu entender, não colhe. “São raros os convívios entre crianças e idosos. Quem circula são os funcionários.”
A AjudAjudar prepara uma exposição para apresentar ao Presidente da República e aos grupos parlamentares. E lamenta a inexistência de um provedor da Criança, que se lhe afigura o interlocutor adequado em casos como estes.
O PÚBLICO perguntou, por email, à Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens se conhece este caso ou outros semelhantes e como os enquadra. Até à hora do fecho desta edição, não obteve qualquer resposta.