Ser trans e estar dependente do Serviço Nacional de Saúde não é fácil

No âmbito da minha tese de mestrado, estive voluntariamente seis meses a entrevistar pessoas trans, na consulta de Sexologia do Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Vou guardar esta experiência para sempre.

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Bandeira transgénero Kyle/Unsplash

Tiago (nome fictício) dizia-me que a sua sorte foi ter tido outro rapaz trans com quem partilhar o quarto de hospital, depois da sua mastectomia; caso contrário, não imagina como realizaria a sua higiene durante o internamento. “Recusaram-se a ajudar-me a tomar banho, talvez não estivessem preparados”, dizia-me, com angústia no olhar.

Menos sorte teve Sandra, que há quatro anos espera pela cirurgia de redesignação de sexo. “Estou desesperada, já não aguento mais, preciso de começar a minha vida, e ainda me dizem que não sou prioritária, que não sou oncológica ou dos queimados. Agora mete-se a covid-19 e nunca mais chega a minha vez.”

No âmbito da minha tese de mestrado, estive voluntariamente seis meses a entrevistar pessoas trans, na consulta de Sexologia do Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Vou guardar esta experiência para sempre.

O objectivo era perceber até que ponto os nossos serviços de saúde estão a actuar de acordo com as necessidades destas pessoas e conhecer a perspectiva de quem tem de recorrer a hospitais e consultas para conseguir viver em plenitude no seu género.

Listas de espera intermináveis, endividamentos com cirurgias privadas, desistências de seguimento após experiências traumáticas com médicos. Durante estas consultas ouvi mais de 100 pessoas, o seu percurso, queixas e vitórias.

No final do trabalho chegamos a um resultado: mais de 50% das pessoas trans são discriminadas, pelo menos uma vez, por um profissional de saúde. Médicos, enfermeiros, auxiliares ou técnicos, todas as classes profissionais foram mencionadas, sendo vários os relatos de linguagem preconceituosa (o episódio de discriminação mais frequente) que recebi, muitas vezes em tom de naturalidade, como se esta experiência já fosse um dado adquirido na vivência destas pessoas.

Confusões com nomes e pronomes também foram frequentes e alguns de tal forma repetidos e tão infrutiferamente corrigidos que culminavam na desistência de acompanhamento com o médico de família.

“Doutora, sem médico de família como conseguem os seus utentes acompanhamento noutras especialidades?”, perguntava eu a Zélia Figueiredo, psiquiatra e sexologista, que acompanha, há cerca de 12 anos, pessoas trans de todo o país. “Não conseguem”, respondia-me.

Na sua consulta, além de acompanhar a transição, Zélia Figueiredo pede análises, fala com médicos de outros hospitais e tenta acelerar o processo o máximo que pode. O acompanhamento hormonal por Endocrinologia, por exemplo, muitas vezes não é feito e é abandonado, se não for o reforço de algumas associações LGBT ou de Zélia Figueiredo. As cirurgias, demoradas, acabam muitas vezes por ser feitas no privado.

Ainda assim, o maior choque foi a transfobia relatada em serviço de urgência. Ainda não consigo imaginar os episódios de sofrimento agudo emergidos por “comentários aos órgãos sexuais”, “exames ao corpo para satisfação de curiosidade” ou “recusas à observação”, aumentando o tempo de permanência no serviço. Todas estas situações foram relatadas, não pontual mas repetidamente ao longo das várias entrevistas.

Hoje, terminada a minha passagem pelas consultas de Sexologia, reflicto sobre a falta de cumprimento de guidelines, lacunas na formação dos profissionais de saúde, barreiras ao acesso à saúde, erguidas a uma comunidade alvo de um ímpar estigma social e interrogo-me quão longo é ainda o caminho a trilhar pelo Serviço Nacional de Saúde para pôr fim a esta discriminação.

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