Legalização do aborto mais próxima na Argentina, depois da aprovação na Câmara dos Deputados
“Aborto legal no hospital, será lei”, cantou-se nas ruas de Buenos Aires. Agora falta a votação no Senado, onde tudo pode acontecer. O Governo planeia levar o texto à câmara alta no dia 29 de Dezembro.
Após quase 20 horas de vigília, milhares de mulheres explodiram em cânticos e abraços. Tinham acabado de testemunhar o que pode vir a ser um dia histórico, aquele em que a legalização do aborto começou a ser aprovada na Argentina. “Acordo legal no hospital, será lei”, cantaram no centro de Buenos Aires, junto ao Palácio dos Congresso, descreve o jornal Clarín.
Não estavam sozinhas. Do outro lado da barreira que dividia a Praça do Congresso em partes iguais estava a chamada “maré azul”, a dos que se opõem à descriminalização. A última vez que este cenário tinha ocupado as grandes avenidas que saem desta praça foi em 2018, quando o Senado chumbou a última proposta de lei para legalizar o aborto no país, e entre a “maré verde” imperava a desilusão.
Desta vez o resultado não deixou dúvidas: 131 deputados votaram a favor, 117 contra e seis abstiveram-se, uma diferença mais ampla do que a verificada quando a iniciativa anterior passou na Câmara dos Deputados. Agora como há dois anos, falta o último obstáculo, o Senado, onde a votação se antecipa bem mais renhida.
De acordo com a imprensa argentina, actualmente os dois lados acreditam ter assegurado o voto de 34 senadores e há três “indefinidos”. Pelo menos um senador, membro do movimento peronista, no poder, é contado tanto pelos “azuis” como pelos “verdes”.
O plano dos partidários da lei é levar o projecto à câmara alta no dia 29, quase na véspera do fim do ano. Do ponto de vista dos regulamentos, poderia ser votado na semana anterior, ainda antes do Natal, mas a ideia é não provocar ainda mais tensões com os senadores que se opõem à legalização.
Tendas instaladas, camas improvisadas, tambores, álcool gel, muitos, muitos cartazes, tantos como as organizações associativas e os partidos que ocuparam as ruas. “A vida não se debate” ou “Nem uma morta mais por abordo clandestino”, lia-se em alguns dos cartazes gigantes. “Estar na rua é a nossa luta para que um direito seja lei”, ouvia-se. Durante a noite tanto se dormiu como se dançou ou jogou à bola.
Estavam muitas mulheres e adolescentes, famílias inteiras, alguns homens. “Acredito na liberdade. As pessoas têm direito a poder escolher”, disse um deles, Tomás, de 32 anos, ao Clarín. Benjamín, de 33, acompanhou as amigas no que descreveu como uma luta do ser humano face aos que atentam contra o corpo das mulheres.
Esta é a nova vez que a descriminalização do aborto vai a votos na Argentina. Ao contrário das anteriores, este é um projecto de lei do Governo e é apoiado pelo Presidente, Alberto Fernández. Prevê que as mulheres “e outras entidades com capacidade de gestação” possam interromper a gravidez até às 14 semanas – a lei actual, de 1921, só permite o aborto em caso de risco sério de vida para a mãe ou aborto, mas os activistas dizem que muitas vezes as mulheres não recebem os cuidados adequados.
3000 mortas desde 1982
Pelo menos 65 mulheres morreram em abortos clandestinos entre 2016 e 2018: metade tinha cerca de 20 anos e nove eram adolescentes. Desde o regresso da democracia, em 1982, contam-se 3000 mulheres mortas. Anualmente, mais de 40 mil mulheres são hospitalizadas por complicações relacionadas com abortos. E desde 2012, pelo menos 73 mulheres, para além de médicos e enfermeiros, foram detidas ou presas por acusações de aborto ilegal.
Em 2018, o Senado chumbou a legalização quando as sondagens mostravam um apoio significativo da opinião pública. A Igreja Católica pressionou muito contra a legislação e o Presidente, o conservador Mauricio Macri, opunha-se. Mas o debate estava instalado de vez na sociedade argentina e as activistas feministas nunca mais pararam.
Apesar de algumas iniciativas recentes para dar às mulheres mais direitos reprodutivos em diferentes países, a América Latina continua a ter quadros legais muito estritos, com a República Dominicana, El Salvador, Nicarágua e Honduras e proibirem o aborto em quaisquer circunstâncias. Outros países abrem excepções no caso de violação ou para salvar a vida da mãe, como o Brasil e o Chile. Só o Uruguai e a Guiana, na América do Sul, e Cuba, nas Caraíbas, para além de cidades como a capital mexicana, já legalizaram o aborto.