Nove meses
Não podemos confiar que as soluções chegarão pela mão de quem não as implementou até hoje, por isso o MAI tem de sair. Não se aceitam passa-culpas.
Um cidadão foi barbaramente assassinado às mãos do Estado português por inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que tentaram depois encobrir o crime. Nove meses depois, o ministro da Administração Interna dirigiu-se ao país numa comunicação em que falou mais sobre si do que sobre o trágico assassinato ou as mudanças que tardam para o SEF. “Desde Março que estive quase sozinho, perante o desinteresse da comunicação social sobre esta situação. Bem-vindos ao combate pela defesa dos direitos humanos.” A afirmação do ministro não só é falsa, como é absolutamente incompreensível vinda de quem tem a tutela do SEF. Uma falta de vergonha ao mesmo tempo que procurou lavar as mãos como Pilatos.
No final de março, mal o país se confrontou com a macabra notícia, o ministro foi chamado ao Parlamento pelo Bloco de Esquerda. Essa audição ocorreu no dia 8 de abril e, além da condenação inequívoca do acontecido, ficou a promessa de uma investigação célere, do apuramento de todas as responsabilidades, de consequências sem olhar a quem e de mudanças na estrutura do SEF. Passaram oito meses e não vemos resultados.
Nem sequer podemos dizer que o Estado tratou com humanidade este caso. Houve mais sensibilidade política a gerir a saída da diretora do SEF do que a lidar com a família enlutada. Foi preciso a viúva vir a público denunciar que nem a transladação do corpo foi assegurada pelo Estado português para ser anunciado que o Governo propôs, “com celeridade”, que fosse determinado o montante para uma indemnização – nove meses depois... Inaceitável, desumano.
Chamava-se Ihor Homenyuk, era ucraniano. Tinha nome, família, filhos, amigos. Tinha uma vida, que perdeu ao ser espancado quando chegou ao nosso país. Foi o caso mais brutal da violência do SEF, mas não o único, nem sequer o último. Um “offshore” de impunidade, é assim que as associações de defesa dos imigrantes se referem às instalações do SEF com relatos recorrentes de violência, tratamento discricionário, racismo, impedimentos no acesso a advogados ou representantes judiciais, ou a impossibilidade de sequer poder fazer uma chamada telefónica. Alçapões sem lei num Estado de direito.
As violações da lei eram referidas por instâncias europeias e condenadas pela provedora de Justiça ao longo dos anos. “No CIT (Centro de Instalação Temporária) de Lisboa, o telefone público da ala dos requerentes de asilo esteve inoperacional durante mais de 20 dias, as pessoas estavam impedidas de realizar chamadas para o exterior”; “duas crianças dormiam no chão”; “encontraram-se estrangeiros, sobretudo mulheres, isolados, por vezes há várias dezenas de dias”. As citações anteriores são de um relatório que a provedora de Justiça fez dos centros do SEF em 2017.
Em 2018, o Governo aprovou um prazo máximo de sete dias de detenção de crianças. Mas, se o que a lei previa já era questionável, a prática foi absolutamente reprovável: o relatório europeu anual The Asylum Information Database, gerido pelo European Council on Refugees (ECRE), denunciou que em 2019 houve crianças a passar quase dois meses em detenção. Não há sombra de dúvida sobre se os problemas do SEF são pontuais ou sistémicos: são inequivocamente sistémicos. Nem percebo as reticências levantas pelo Presidente da República, que até conhece bem este assunto. Temos de mudar estruturalmente a forma como o Estado recebe quem nos procura para viver e trabalhar.
Será que o ministro da Administração Interna (MAI) não sabia disto? Só conheceu os problemas agora? Ele sabia, até porque prometeu no programa eleitoral que levou a eleições separar o SEF entre polícia e entidade administrativa. Mas o tempo passou, a violência piorou até que alguém morresse nas instalações do SEF e, mesmo depois disso, nada de estrutural foi feito até hoje. A medida mais relevante foi a introdução de um “botão de pânico” para chamar de volta o Estado de direito. Ridículo. E aqui se encontra o problema de fundo: não podemos confiar que as soluções chegarão pela mão de quem não as implementou até hoje, por isso o MAI tem de sair. Não se aceitam passa-culpas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico