Porque é relevante a dimensão género/sexo na investigação científica?
Para criar condições para a integração da dimensão género/sexo nas atividades de investigação, a Universidade de Coimbra lança esta sexta-feira a iniciativa GendER@UC. O evento contará com a comissária Mariya Gabriel e a presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Helena Pereira.
A dimensão do género/sexo na investigação científica é uma das prioridades da Comissão Europeia no próximo programa de financiamento para a Investigação e Inovação, o Horizonte Europa. E como refere Mariya Gabriel, comissária para Inovação, Investigação, Cultura, Educação e Juventude, é necessário “intensificar os nossos esforços para garantir que a integração da dimensão do género nos conteúdos de investigação e inovação (I&D) seja um pilar no Horizonte Europa, e que seja totalmente integrado no Espaço Europeu da Investigação (ERA). É assim crucial que os Estados-membros da União Europeia se certifiquem de que os seus programas nacionais de investigação e inovação também têm em conta esta dimensão. Desta forma, juntos, podemos dar grandes passos em direção a um Espaço Europeu da Investigação novo, inclusivo e transformador.”
A integração da dimensão de género/sexo na investigação científica pode ser dividida em duas componentes, que se cruzam: no contexto em que se produz o conhecimento e no conteúdo do conhecimento produzido. O contexto do género na investigação científica refere-se ao ambiente em que se desenvolve a investigação, nomeadamente as equipas de investigação com diversidade de investigadoras e investigadores, na gestão de recursos e condições de trabalho, e na tomada de decisões. Enquanto o conteúdo da dimensão género/sexo refere-se à sua integração nas metodologias e análise dos resultados da investigação científica.
Gostaria de recordar que sexo e género são conceitos distintos: sexo (feminino, masculino e/ou intersexo) é resultado dos atributos biológicos, como cromossomas, órgãos reprodutores e hormonas; género refere-se a normas e relações socioculturais que modelam comportamentos, produtos, tecnologias, ambientes e conhecimentos, e que mudam ao longo do tempo, com a educação, idade e condições socioeconómicas, e ainda diverge entre culturas, religiões e etnias.
Vejamos alguns exemplos que mostram como é relevante a integração da dimensão do género/sexo na investigação científica para originar conhecimento com maior qualidade, mais inclusivo, representativo e socialmente relevante. Alguns destes exemplos foram recentemente descritos no relatório publicado pela Comissão Europeia Gendered Innovations 2: How inclusive analysis contributes to research and innovation.
Na investigação e desenvolvimento de novos medicamentos, os ensaios pré-clínicos (em animais de laboratório) e os ensaios clínicos eram realizados predominantemente em ratos machos ou em homens. Como resultado, as mulheres relatam efeitos secundários dos medicamentos mais adversos do que os homens e, às vezes, até mortais.
De forma a mitigar estas situações, a integração da dimensão sexo na descoberta e desenvolvimento de novos medicamentos deve ocorrer durante todo o processo de investigação, desde as células utilizadas, a realização de testes em animais machos e fêmeas, e ensaios clínicos em homens e mulheres, e ainda os resultados deverão ser analisados separadamente. Assim, novos medicamentos em que a sua investigação integrou a dimensão sexo serão potencialmente mais eficazes e seguros. Em relação à dimensão do género, os estereótipos do género podem também influenciar a deteção de sintomas nas mulheres, homens e género diverso.
Outro exemplo interessante da relevância da dimensão do género/sexo na área da saúde é a dor crónica. Alguns estudos mostraram que as mulheres apresentam geralmente um limiar de dor mais baixo e alguns investigadores atribuíram essas diferenças a diferenças biológicas (sexo). Mas outros investigadores sugeriram que essas diferenças observadas são, pelo menos em parte, devido a componentes do género (socioculturais), nomeadamente como os sintomas são relatados por mulheres, homens e de género diverso, e ainda como os médicos entendem e tratam a dor de acordo com o género dos doentes.
Passemos à relevância da dimensão do sexo noutra área. O sexo em diversas espécies marinhas resulta da componente genética e de fatores ambientais, e alguns estudos mostram que alterações do ambiente aquático podem levar a diferentes proporções de machos e fêmeas. Por exemplo, a diminuição de oxigénio na água resulta numa maior percentagem de peixes-zebra machos; a acidificação dos oceanos resulta em mais ostras fêmeas do que machos; o aumento do pH aquático resulta em mais peixes fêmeas (ciclídeos). Estas alterações na proporção de sexos das espécies marinhas, em qualquer direção, resultam em populações menos resilientes e potencialmente levarão ao colapso demográfico dessas espécies. Assim, o estudo e a compreensão do impacto ambiental no sexo das espécies marinhas são relevantes porque contribuem para avaliar o impacto das perturbações induzidas pelo homem e alterações climáticas nos ecossistemas e permitem definir prioridades em relação à sua conservação.
Todos estes exemplos mostram que reforçar a integração da perspetiva de género/sexo nos processos e conteúdos de investigação científica influência a qualidade e utilidade dos resultados científicos finais, e o seu impacto na sociedade.
No entanto, para que a dimensão do género/sexo seja integrada em pleno nas atividades de investigação, como é objetivo da Comissão Europeia, deverá ser criado um reforço conjunto de todos os intervenientes no processo de investigação, nomeadamente das instituições onde decorrem as atividades (unidade de investigação e instituição de ensino superior) e de todas as pessoas envolvidas, nomeadamente investigadores e investigadoras nas diversas fases de carreira (incluindo estudantes de doutoramento), gestores de ciência, gestores de projeto, avaliadores de projetos, editores de revistas, revisores de artigos, e ainda das instituições de financiamento da investigação, como a Comissão Europeia e ainda a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). E em cada projeto de investigação será necessário identificar, mitigar e analisar todos pontos relevantes na formação da equipa de investigação, no processo de recrutamento, na escolha dos colaboradores, e ainda ao longo das várias fases do projeto (no desenho, na execução, na análise dos resultados e na forma de comunicar esses resultados).
De modo a criar condições para a completa integração da dimensão género/sexo nas atividades de investigação, a Universidade de Coimbra lança a 11 de Dezembro a iniciativa GendER@UC num evento que vai contar com a participação da comissária Mariya Gabriel e da presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Helena Pereira, que vão falar dessa temática. Esta iniciativa tem como objetivo final promover a produção e disseminação de conteúdos de investigação mais inclusivos, representativos e relevantes para a sociedade.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico