Estratégia do Governo contra corrupção sabe a pouco, diz Joana Marques Vidal

Ex-procuradora-geral da República discorda da posição da sua sucessora sobre os poderes dos dirigentes do Ministério Público. Defende mecanismos para recompensar criminosos arrependidos mais ambiciosos e quer classe política mais fiscalizada, incluindo autarcas.

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Rui Gaudencio

A ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, gostava que a estratégia de combate à corrupção apresentada pelo Governo fosse mais ambiciosa em vários aspectos, como o de recompensar os criminosos que colaborem com a justiça - o chamado direito premial - e a fiscalização dos rendimentos da classe política. A magistrada admite também a criação de tribunais especializados na criminalidade económico-financeira, muito embora não seja taxativa no que respeita à constitucionalidade deste tipo de medida.

“Aquilo que está na estratégia sobre o direito premial é muito pouco”, observou Joana Marques Vidal, que participou num ciclo de debates que a Universidade Católica de Lisboa dedicou ao tema. Em causa está sobretudo definir se um criminoso arrependido que colabore com a justiça pode ser dispensado de pena logo na fase de investigação do processo ou se ele tem necessariamente de ser submetido a julgamento, sem garantias prévias de ser ilibado graças a essa colaboração.

“É importante conseguir a possibilidade de dispensa de pena durante a fase de inquérito”, apesar de a estratégia do Governo não a prever, defendeu a magistrada, que se revê, neste capítulo, naquilo que preconizou recentemente o procurador jubilado Euclides Dâmaso num outro debate sobre o mesmo tema: que é impossível quebrar os pactos de silêncio entre os criminosos de colarinho branco sem lhes garantir que se livram de ir a julgamento. “Levá-los a julgamento é desmantelar qualquer intenção de colaboração com a justiça que possam ter”, avisou Euclides Dâmaso.

Mas não é só neste capítulo que a ex-procuradora-geral da República entende que a estratégia do Governo sabe a pouco. A magistrada elencou outros aspectos em que documento é omisso: contratação pública, urbanismo e planeamento do território, impedimentos dos titulares dos cargos públicos e políticos, financiamento partidário, branqueamento de capitais e fiscalização das autarquias locais. A equiparação dos autarcas a governantes feita em 2016, na lei do Tribunal de Contas, para efeitos de responsabilização financeira fez com que os titulares destes cargos se tenham passado a poder eximir a prestar contas na matéria, tirando as situações em que decidiram contra a opinião dos técnicos que os assessoraram.

E isso deve ser mudado, defende Joana Marques Vidal, para quem poderá não ser inconstitucional – como muitos dizem que é – a criação de tribunais especializados em criminalidade económico-financeira. Afinal, não existem já tribunais especializados, como o da concorrência? -, questionou, mesmo não se mostrando taxativa sobre o assunto.

Abordada neste debate foi igualmente a controversa questão dos poderes das hierarquias do Ministério Público, suscitada depois de o director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal ter entendido, ao contrário dos procuradores titulares do processo de Tancos, que era escusado ouvir neste processo, na qualidade de testemunhas, o primeiro-ministro António Costa e o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. E aqui, sim, a ex-procuradora-geral da República foi peremptória: “Não me parece que a lei permita que os superiores hierárquicos interfiram directamente no que respeita a definir quais as diligências a fazer em cada processo concreto”. Porém, uma directiva da sua sucessora no cargo, Lucília Gago, apresenta um entendimento radicalmente oposto da questão, abrindo a porta, segundo o Sindicato de Magistrados do Ministério Público, “à interferência política na investigação criminal”.

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