A cláusula do Estado de direito faz sentido (mesmo que Costa ache que não)
Esta não é uma mudança puramente financeira, económica ou orçamental; é uma mudança política, de natureza quase constitucional.
1. Sem rodeios: o Fundo de Recuperação representa muito mais do que uma solução económica e financeira. A solução encontrada, na senda de uma proposta de Merkel e Macron, mas na realidade protagonizada pela presidente da Comissão, consubstancia um grande passo em frente na integração europeia. Ela importa uma evolução política e até constitucional de monta, que anteriormente muitos Estados não estariam dispostos a considerar. Justamente porque ela assenta na emissão de dívida europeia, implica também que alguns Estados tivessem feito importantes concessões num domínio que habitualmente reputavam como “intocável”. Insisto no ponto que é essencial: esta não é uma mudança puramente financeira, económica ou orçamental; é uma mudança política, de natureza quase constitucional.
É, por isso, natural que, aceitando dar um passo desta dimensão, muitos Estados-membros quisessem também garantir o respeito pelos valores precípuos da União. Esse núcleo de valores corresponde aos pilares do princípio do Estado de direito, a saber: garantia dos direitos fundamentais, separação dos poderes, independência dos tribunais, pluralismo político-partidário e eleições livres, pluralismo mediático, liberdade de expressão e liberdade de imprensa.
2. Poderá perguntar-se por que razões a protecção destes valores ganhou tanta importância neste contexto. Não julgo que seja muito difícil aduzir e perceber essas razões. Por um lado, a vontade de criar mecanismos de avaliação não é nova; vem de trás, vem de longe (definição dos critérios de Copenhaga em 1993; “ostracização” do Governo austríaco que incluiu Haider em 2000). Por outro, ficou bem clara no Tratado de Lisboa, pela via do art. 7.º, que, entretanto, o Conselho não quis ou não foi capaz de aplicar (e que não exige, no seu todo e necessariamente, a unanimidade). Ao que acresce que a consciência do problema se tornou muito mais candente com a prática de vários governos nos últimos anos, entre os quais se contam os muito falados húngaro e polaco, mas também o maltês ou os anteriores governos romeno e eslovaco.
A pouco e pouco, a degradação da qualidade das garantias do Estado de direito começou a emergir como um problema sistémico. Aliás, era precisamente por subsistir esta preocupação que muitos buscaram, no quadro do Parlamento e do Conselho, criar um mecanismo permanente de avaliação e intervenção nesta área. Infelizmente, alguns governos, entre os quais o Governo Costa, mostraram-se sempre relutantes e resistentes a esse intento.
Finalmente, convém não esquecer que o contexto da pandemia deu lugar a um decretamento generalizado e duradouro de “estados de excepção” que constrangem e ameaçam aquele quadro estável e assumido de liberdades e direitos. Tudo isto lembrado e ponderado, chega a ser caricato que tanta gente, por entre governantes, políticos e comentadores, estranhe o emergir desta exigência neste quadro e nesta conjuntura. Vou mesmo mais longe: numa altura em que a União se mostra capaz de dar o famoso salto “hamiltoniano”, é perfeitamente natural que tenha avançado para este desenvolvimento constitucional.
3. Foi esta ligação profunda entre aquele novíssimo e disruptivo horizonte financeiro e o desenvolvimento constitucional da democracia europeia que António Costa não compreendeu ou não quis compreender. Por mais que aqui, nestas mesmas páginas, Teresa de Sousa queira sustentar o insustentável, não há como o iludir. Em Julho de 2020, António Costa defendeu, expressamente e sem quaisquer reservas, que a atribuição dos fundos europeus não deve estar dependente do cumprimento do princípio do Estado de direito. E fê-lo, numa inusitada visita a Viktor Orbán e ao lado dele.
Ou seja, dando apoio explícito à posição da Hungria. E só faltava agora a desculpa esfarrapada de que o fez a mando ou a pedido de Angela Merkel. Isso, mesmo que houvesse ocorrido, alguma vez justificaria a posição que Costa veiculou? E, já agora, em algum momento a chanceler alemã precisou de um mediador para falar com o primeiro-ministro húngaro? E nesse mandato, também estaria incluída a obrigação de dizer, como disse Costa, que o Governo português secundava a posição húngara? A tese, arrancada agora na 26.ª hora, não tem qualquer cabimento.
Nem todos notam, aliás, mas, apesar das juras em contrário, Costa mantém-se sibilino. Costa foge sempre a dizer se concorda com a vinculação directa da dispensa de fundos ao cumprimento dos valores do Estado de direito. Contorna sempre a questão, afirmando: “os valores não têm preço” ou “o problema do Estado de direito está muito para lá dos fundos, sendo, antes de tudo, uma condição de pertença à União”.
Com esta formulação ambígua, que é exactamente igual à utilizada a 14 de Julho na visita a Orbán, Costa não muda afinal a sua doutrina. Não por acaso, foge-lhe sempre o pé para a invocação do art. 7.º que, segundo essa sua doutrina, era a instância correcta para tratar do problema. Mas que se saiba, António Costa nunca fez nada para pôr o art. 7.º em andamento – nem ele, nem qualquer outro chefe de executivo europeu. E, como bem lembra Teresa de Sousa e já várias vezes aqui tenho dito, numa primeira fase, para tanto bastaria a maioria qualificada.
4. Alguns dirão ainda que, seja como for, o líder do PSD também expressou dúvidas quanto ao acerto da “conexão fundos e Estado de direito”. Embora discorde rotundamente desta posição, a verdade é que Rio defendeu que essa conexão não deve valer para o Fundo de Recuperação (Next Generation EU), mas já deve valer para o Quadro Financeiro Plurianual (os chamados “fundos estruturais”). Apesar de tudo, sempre faz uma diferença que Costa se recusa a fazer: a diferença entre uma ajuda de emergência e as políticas constantes e estruturais da União. O busílis da questão, a meu ver, é que a ajuda de emergência representa muito mais do que uma solução casuística e, por isso, legitima consequências constitucionais de tomo.
SIM e NÃO
SIM. Eduardo Lourenço. Sem ele, Portugal não se escreveria a si mesmo e não teria a mesma voz, a mesma caligrafia, o mesmo semblante. E a Europa, a das duas razões, seria outra.
SIM. Giscard D’Estaing. Tanto na presidência de França como na política europeia, foi capaz de ambicionar e de ousar. Um conservador atrevido e de vanguarda, que via a sua intervenção com um dever.