Bruxelas: Portugal violou regras na zona franca e tem de recuperar ajudas ilegais às empresas
Comissão Europeia arrasa controlo fiscal da Zona Franca da Madeira ao declarar que Portugal concedeu isenções fiscais de forma ilegal.
Depois de três anos de monitorização e dois de investigação aprofundada, a Comissão Europeia decidiu hoje considerar ilegal a forma como Portugal concedeu isenções fiscais a empresas licenciadas na Zona Franca da Madeira (ZFM).
A decisão é de enorme impacto: vai obrigar o Estado português (o fisco regional e o fisco nacional) a recuperar os valores às empresas que não cumpriram as condições e que beneficiaram de uma redução da carga fiscal em IRC de forma indevida com benefícios fiscais acima de 200 mil euros.
A decisão foi divulgada na manhã desta sexta-feira pela Comissão Europeia. “A investigação da Comissão revelou que as reduções fiscais foram aplicadas a empresas que não contribuíram verdadeiramente para o desenvolvimento da região, incluindo no que diz respeito a postos de trabalho criados fora da Madeira (e mesmo da União Europeia), em violação das condições das decisões e das regras da UE em matéria de auxílios estatais. Portugal deve agora recuperar o auxílio incompatível, acrescido de juros, junto das empresas que não respeitaram as condições”, revela a Comissão.
Quando, em 2007 e 2013, a Comissão aprovou o regime da ZFM (o que vigorou de 2007 a 2014), fê-lo por considerar que as condições acordadas com o Estado português eram compatíveis com o mercado interno europeu. Autorizou-o sob uma determinada condição: a de que, ao conceder benefícios fiscais às empresas licenciadas na zona franca, o Estado português teria de aplicar as reduções de IRC aos lucros resultantes de actividades económicas efectivamente realizadas na região da Madeira.
O que Bruxelas veio detectar entretanto, ao fazer uma investigação mais apertada a partir de 2015, foi que a República Portuguesa não cumpriu o espírito do acordo. E ao não cumpri-lo, estava a colocar em causa a concorrência no mercado interno europeu, concedendo isenções fiscais a empresas sem actividade real no arquipélago e a empresas que não criaram o número de postos de trabalho que teriam de criar na Madeira para poderem beneficiar dessa redução da carga fiscal em IRC.
Para a Comissão Europeia, as empresas que não exercem as suas actividades na Madeira não podem ser consideradas beneficiárias legítimas do regime da zona franca tal como foi aprovado em 2007 e 2013, não podendo ter direito ao auxílio ao funcionamento com finalidade regional.
O objectivo do regime é o de as empresas da região poderem ser compensadas pelos custos adicionais “decorrentes das desvantagens naturais, como o afastamento, a insularidade, a pequena dimensão, as dificuldades topográficas e climáticas, e a dependência económica de um pequeno número de produtos”, daí que as actividades das empresas tenham de estar localizadas no arquipélago.
A questão aplica-se às empresas licenciadas ao abrigo do chamado “regime III”, que vigorou até ao final de 2014, mas cujas condições são idênticas ao “regime IV” que agora está em vigor, quase a expirar se não for prolongado para lá de 2020.
Riscos de lavagem de dinheiro
Foram dois os problemas identificados pela investigação aprofundada. Primeiro, “o número de postos de trabalho tidos em conta por Portugal para o cálculo do montante do auxílio ao abrigo do regime incluía os postos de trabalho criados fora da Zona Franca da Madeira e mesmo fora da UE. Além disso, os empregos a tempo parcial foram tidos em conta como empregos a tempo inteiro e os membros do conselho de administração foram contabilizados como trabalhadores em mais do que uma empresa beneficiária do regime, sem um método de cálculo adequado e objectivo”. Segundo, “os lucros que beneficiaram da redução fiscal não se limitaram aos relacionados com actividades efectiva e materialmente realizadas na Madeira”.
Portugal não terá de recuperar a parte do IRC que está em falta a todas as empresas licenciadas na zona franca, mas sim às que incumpriram as condições. Quais são? As que “receberam mais de 200.000 de euros ao abrigo do regime de auxílios” de forma indevida, o que acontece quando os postos de trabalho criados e que permitiram o acesso a esse benefício fiscal estão localizados fora da Madeira ou quando os rendimentos gerados partiram de actividades realizadas fora da Madeira.
Portugal terá oito meses para cumprir a decisão, revela o comunicado do executivo comunitário.
A partir de uma metodologia definida na decisão da Comissão Europeia, Portugal terá de identificar quais as empresas que não respeitaram as condições, por isso, explica a Comissão Europeia, “os valores finais sobre o número de empresas sujeitas a recuperação e o montante total do auxílio a recuperar não podem ser conhecidos nesta fase”.
Na decisão anunciada nesta sexta-feira, a Comissão Europeia faz questão de sublinhar que a investigação que realizou nos últimos anos não põe em causa o estatuto da Madeira como região ultraperiférica, “nem a sua elegibilidade para auxílios regionais”. O que aconteceu foi uma violação das regras acordadas, isto é, das regras europeias em matéria de concorrência, pois foram dados auxílios ilegais que “não podem ser considerados compatíveis com o mercado interno”.
Portugal terá agora de executar esta decisão da Comissão Europeia, caso contrário, Bruxelas tem a prerrogativa de levar o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). No entanto, logo que em 2018 a Comissão Europeia abriu uma investigação formal — com uma decisão preliminar que já ia no mesmo sentido daquela que agora foi conhecida —, Portugal reagiu e começou a desencadear uma série de inspecções a empresas da ZFM obrigando-as a fazer correcções em IRC.
O caso vem colocar a nu as deficiências do controlo financeiro e fiscal exercido pelo Estado português ao longo dos anos na ZFM, território que foi recentemente identificado pelo procurador da República Jorge Rosário Teixeira como uma zona de risco de lavagem de dinheiro em Portugal.
Numas jornadas do Conselho Regional da Madeira da Ordem dos Advogados sobre a prevenção do branqueamento de capitais, realizada no Funchal a 16 de Outubro deste ano, o procurador identificou a zona franca com três tipos de actuação “censuráveis”: desenho de estruturas societárias complexas, recurso a fundos fiduciários para ocultar a identidade e utilização de contas bancárias de passagem.
O problema que o executivo comunitário agora oficializou foi levantado ao longo dos últimos anos pela ex-eurodeputada do PS Ana Gomes, agora candidata presidencial, que, enquanto parlamentar, fez chegar à Comissão exposições sobre casos de empresas com benefícios fiscais (como os de empresas ligadas à Sonangol, da empresária angolana Isabel dos Santos ou de Francisca Nguema Jiménez, filha do Presidente da Guiné Equatorial, o ditador Teodoro Obiang).