Cancro do fígado: é crucial prevenir e diagnosticar mais cedo
É um dos cancros com prognóstico mais reservado. A prevenção é urgente e, o diagnóstico precoce, um verdadeiro desafio. Onde reside a esperança para doentes com cancro no fígado? Nos ensaios clínicos, na inovação, nos novos fármacos e na imunoterapia combinada.
É o 11º tumor mais frequentemente diagnosticado e a sétima principal causa de morte relacionada com cancro em Portugal. É um tumor altamente fatal, com a maioria dos casos detectados, infelizmente, em estadios avançados”, refere António Araújo, director do Serviço de Oncologia Médica no Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP). O médico oncologista alerta para o facto de a incidência deste tumor ter aumentado 75% em todo o mundo, entre 1990 e 2015, e que a previsão futura é de manter esta tendência, o que reflecte “o envelhecimento da população”.
Um dos grandes desafios que os profissionais de saúde têm de enfrentar é o atraso no diagnóstico, ou seja, em estado já muito adiantado, daí a necessidade de aposta na prevenção. “O cancro do fígado é uma situação prevenível, evitável, tratável e, por vezes, curável. Neste momento, o papel a que somos mais vezes chamados ainda é na fase de diagnóstico e na primeira etapa de tratamento”, refere Guilherme Macedo, gastroenterologista e director de serviço de Gastroenterologia do Hospital de São João (HSJ). Numa primeira fase preventiva, recomenda-se a evicção do álcool, o controlo e o tratamento das hepatites víricas (para a hepatite B, existe vacina e é possível tratar e até curar a hepatite C através de medicação), factores de risco para a cirrose. Por outro lado, recomenda-se a promoção de estilos de vida saudáveis e a prevenção da diabetes e da obesidade.
O carcinoma hepatocelular afecta três vezes mais os homens do que as mulheres e a média de idades, no momento de diagnóstico, ocorre entre os 50 e os 60 anos. Quem tem mais predisposição para a mesma “são as pessoas que têm doença hepática crónica, ou seja, cirrose”, explica o também professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente eleito da Organização Mundial de Gastroenterologia. “2/3 dos casos de cirrose em Portugal devem-se à ingestão de álcool.”
A importância do diagnóstico
Surgem mais de 1300 novos casos de cancro do fígado em Portugal, todos os anos. O facto de os sintomas e sinais serem muito inespecíficos e tendencialmente estarem associados a outras condições clínicas, podem vir a ser valorizados num estádio já avançado. “Perante a suspeita de um tumor do fígado, o diagnóstico deve ser realizado através de um exame de imagem: ecografia abdominal, tomografia computorizada (TAC) abdominal e/ou, eventualmente, ressonância magnética nuclear (RMN) abdominal”, salienta António Araújo. O médico oncologista diz ainda que o carcinoma hepatocelular é o único tipo de tumor que pode ser única e exclusivamente diagnosticado por imagem, sem necessidade de uma biópsia para comprovação. “No entanto, em alguns casos (quando a imagem não é suficientemente esclarecedora) poderá estar indicada a realização de uma biópsia hepática, de preferência guiada por ecografia, para o diagnóstico definitivo”, sublinha. “As técnicas de imagem permitem identificar se um fígado cirrótico desenvolveu uma lesão que possa ser cancro do fígado numa fase em que seja possível tratá-lo”, acrescenta Guilherme Macedo. Diagnosticado numa fase inicial, o prognóstico do doente melhora sobremaneira. “Pelo contrário, quanto mais avançado o tumor quando é identificado, mais paliativo será o tratamento (não curativo, levando a menor taxa de sobrevida)”, alerta António Araújo
Como tratar?
“O único tratamento do cancro do fígado que permite longas sobrevivências é o a ressecção cirúrgica que pode ser parcial ou total. A primeira consiste em retirar apenas o tumor e extrair uma parte do fígado onde está o tumor e a ressecção total é o transplante hepático”, explica Eduardo Barroso, cirurgião hepato-bilio-pancreático da Fundação Champalimaud e ex-director do Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central - Hospital Curry Cabral. Quando se comparam as duas opções, há que ter em consideração os casos de doentes que podem ser operados numa fase muito inicial em que a cirrose não é muito grave (e onde é possível recorrer à ressecção parcial).
Eduardo Barroso liderou um trabalho pioneiro no mundo quando ainda era director do Hospital Curry Cabral com outros seis centros mundiais que veio demonstrar que “a transplantação é de longe o melhor tratamento para o cancro do fígado e permite tratar, em simultâneo, o fígado cirrótico”, adianta. Guilherme Macedo sublinha ainda que “é evidente que não temos órgãos capazes de substituir todos os tumores do fígado até porque, por vezes, não há condições para a realização da transplantação. Podemos recorrer a alternativas cirúrgicas que nos permitem ganhar tempo e retirar os tumores mesmo que se mantenha a condição pré-maligna – o fígado cirrótico”. Existem ainda outros tratamentos específicos, como a radiofrequência ou a alcoolização do tumor. “Temos ainda alguns agentes farmacológicos e existe um entusiasmo recente em soluções adicionais sobretudo numa fase mais avançada da doença, mas, de uma maneira geral, gostaríamos que as mesmas fossem possíveis de aplicar numa fase mais precoce”, salienta o médico gastroenterologista do HSJ.
Estima-se que morram mais de 1300 pessoas com cancro do fígado todos os anos. “O cancro avançado do fígado dá-nos muito pouca margem de manobra e a mortalidade é muito grande a um e dois anos”, alerta o gastroenterologista. O médico oncologista António Araújo partilha outros números preocupantes. “O prognóstico geral de sobrevida dos doentes com tumor do fígado é mau, com uma taxa de sobrevida mediana aos cinco anos de cerca de 18%. Por estádio, a sobrevida mediana aos cinco anos é de cerca de 32% em doentes com doença localizada, 10% com doença regional e 2% com doença à distância”, refere. Perante tal realidade, que esperança podem ter estes doentes?
Uma nova esperança
Actualmente, existem ensaios clínicos a decorrer na tentativa de melhorar o seu prognóstico. “Nas fases mais iniciais da doença, temos novos fármacos que, quando combinados com o tratamento loco-regional, parecem conseguir diminuir a recidiva e aumentar a vida de doentes com cancro do fígado. Nas fases mais avançadas, novos tratamentos – com imunoterapia e outras moléculas – têm demonstrado excelentes resultados. Em breve, estará disponível uma nova associação com imunoterapia que permitirá aumentar a sobrevida dos doentes com doença avançada de forma significativa e passará a ser um tratamento standard of care”, salienta António Araújo.
Quando o cirurgião Eduardo Barroso começou a sua carreira, não existiam os métodos de diagnóstico que conhecemos hoje e “nem sequer havia quimioterapia”. Actualmente, além do aparecimento de novos fármacos, vivemos “uma grande esperança sobretudo na imunoterapia para tratamento do fígado”. Explorar mais ferramentas de diagnóstico avançadas e eficazes no futuro pode ser importante para encontrar tratamentos seguros e minimamente invasivos para avaliação de “um prognóstico conveniente e sensível para o carcinoma hepatocelular”, acrescenta.
Assim, o prognóstico está muito dependente da fase em que o tumor é diagnosticado daí a importância dos rastreios. Por esse motivo, Guilherme Macedo não se cansa de insistir na mensagem da aposta na prevenção como uma mais valia nesta doença e chama à atenção para a importância de os doentes não adiarem a recorrência às consultas e aos rastreios durante a pandemia. “No Hospital de São João, foram criadas estruturas de circuitos paralelos e alternativas para que haja maior segurança para as pessoas que não têm doença associada à Covid-19. Estas devem continuar a fazer os seus programas de rastreio, de vigilância e os seus tratamentos das hepatites. Só assim é possível controlar as doenças a longo prazo”, conclui.