Pássaro de gaiola

Às vezes gosto de imaginar que ainda lá está, naquele casarão tão grande, e quando eu quiser vê-lo basta aguardar na sala de visitas. Eu sei que é egoísta da minha parte, mantê-lo assim na gaiola, mas é mais fácil para o meu coração.

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Daniel Sessler/Unsplash

No dia 24 de Dezembro fui visitá-lo com o pai e o tio. Quando chegámos, demos o nome na recepção e levaram-nos para a sala de visitas. Foi como viajar até um tempo feudal: um tapete vermelho e dourado envelhecido pelo Sol cobria o chão, em cada canto da sala havia um cadeirão de madeira torneada, ao centro uma mesa baixa, de um lado uma vitrina cheia de livros com pó e, do outro, um retrato de uma qualquer figura altiva. Perguntei quem era. 

- Provavelmente, o senhor a quem pertenceu esta casa, antes de a doar.

O pai e o tio sentaram-se confortavelmente, já conheciam bem esta rotina. Eu pousei na mesa a prenda que trazia e sentei-me, mas não consegui fingir que estava confortável. A decoração era antiquada e formal e aquele retrato parecia fixar-me. 

Era um dia de Inverno alentejano, frio, soalheiro e húmido. Já tinha bebido um galão e comido massa frita na azáfama do mercado, cumprimentado caras familiares e falado da actualidade de forma corriqueira. Agora estava sentada em silêncio, numa casa de um tal nobre, à espera de permissão para vê-lo. Comecei a tentar ler o título dos livros que estavam na vitrina e percebi que a maioria era de cariz religioso e imaginei-o a soltar uma gargalhada quando, depois de colocar os óculos de fundo de garrafa, conseguisse a custo ler do que tratavam. “Não me trouxeram antes o Público?”

- Ora aqui está ele! - o meu pensamento foi interrompido. Olhei para a porta. Vi primeiro a bengala e depois um grande sorriso.
- Ah, estão vieram-me buscar! - estava como eu me lembrava, e a cena desenrolava-se como me tinham avisado.

O pai e o tio riram-se, desvalorizando o seu entusiasmo.

- Não, então o pai quer-se ir embora? Está a ser tão bem tratado!
- Nunca o pai esteve tão bem e tão cheirosinho! - e riam-se os três homens, duas gerações a lidarem com as emoções e a saudade como melhor sabiam.
- Nem se quer me levam a ver a quinta… Às tantas já morreu tudo! - ia usando vários argumentos para tentar sair do lar, mas sem sucesso. - Deixaram-me aqui sozinho. Não há nada como a nossa casa nem como a nossa família, um dia vais compreender - o meu coração apertava-se de cada vez que ouvia aquilo, o sentimento de abandono era mútuo. - É que eu não sou pássaro de gaiola! - e todos se riram da veracidade por detrás daquela constatação dramática, eu incluída.

Abrimos a prenda que era afinal uma caixa de bolachas. O pai e o tio foram andando, ainda iam à quinta antes do almoço. Eu quis ficar consigo. Falámos de tudo um pouco, perguntou-me o que faziam o pai e tio em Lisboa:

- Têm para lá algum negócio? E perguntou por mim: - Ainda estás em Londres? E uma vez mais perguntou onde estava. 

Eu, sem jeito, peguei no telemóvel e abri o Google Maps para lhe mostrar que estávamos, de facto, em Nisa. Não sei se foi por lhe ter mostrado um mapa, mas deu-se por convencido. 

Depois apareceu uma senhora que se agarrou às minhas mãos. Fez muita questão de me dizer que eram muito amigos e de onde se conheciam (teria sido vizinha ou talvez uma amiga da família?). Sinceramente não me lembro de nada do que a senhora disse, mas lembro-me de o observar e do seu riso enquanto falávamos os três. 

Ouvi um sino, era hora do almoço. O avô foi lavar as mãos e despediu-se à pressa de mim:

- Tu não vens? - abanei a cabeça, - Então vá, tenho de ir se não não sobra nada para mim, adeus! 

E lá foi andando todo contente, com o passo mais leve motivado pelo cheiro da comida e usando a bengala para acenar a cada conhecido com quem se cruzava. 

Também eu fui andando pela vila antiga por entre ruelas sinuosas até chegar ao largo onde está a farmácia, a loja chinesa e uma escultura moderna. Nas ruas ecoavam músicas de Natal e os passos das gentes nos afazeres pré-ceia. Naquele dia, e apesar da confirmação de que não se encaixava num lar, fiquei contente de o ter visto feliz e com sentido de humor. Fiquei ainda mais grata de ter sido esta a nossa despedida e a última vez que o vi, com a certeza de que cada um ia à sua vida, de coração cheio de partilhas e gargalhadas. Às vezes gosto de imaginar que ainda lá está, naquele casarão tão grande, e quando eu quiser vê-lo basta aguardar na sala de visitas. Eu sei que é egoísta da minha parte, mantê-lo assim na gaiola, mas é mais fácil para o meu coração. 

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